Sobre a regressão brasileira
Oficialmente o descobrimento do brasil foi em 22 de abril de 1500. Abriram horizontes, avistaram o paraíso e encontraram o que eles achavam que estava perdido. Na real, extra-oficial, é que essa história é uma descoberta forjada. Construíram o enredo tendo como bússola o olhar de quem vinha não o de quem estava. Cabral virou herói, a Terra de Vera Cruz o exótico paraíso e os índios “bons” selvagens.
Atualmente estou lendo “Sobre o autoritarismo brasilerio” da Lilia Schwarcz. Sempre que a leio regresso subitamente às minhas aulas de literatura, ao início de um processo de formação permeado por rachaduras e vedações implícitas num cerceamento de sensações para dar sentido a um país onde o tudo quer dizer nada e o nada é sinônimo de maioria. O retalho temático do livro apresenta o brasil de hoje no espelho de um monóculo em alta definição. Entre “escravidão e racismo”, “patrimonialismo”, “corrupção” e todas as raízes profundas entranhadas no tecido histórico dessa narrativa, constatamos que nosso processo de evolução é cíclico em 360º. As coisas se repetem, as personagens se transferem e parecemos nada entender, muito menos aprender.
Eu também vejo o futuro repetir o passado e acho que o George Santayana tem razão.
Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la. Viva o (quê) povo brasileiro?
Pior que o desconhecido é conhecer uma história inequívoca em seus próprios equívocos. A letra de Cazuza se eterniza na infinitude do tempo, na atemporalidade do seu grito que ecoa mas cujo alerta parece passar incólume. Escutam, mas não ouvem. Só falam, dizem, afirmam, sentenciam. Verdades absolutas, obsoletas.
O brasil de outrora cada dia me parece ser menos nocivo e insalubre. A história, antes adormecida num sono calculado à espreita do primeiro sinal de anuência, parece se repetir com traços mais nefastos e sombrios. A impressão de progresso de uma nova era democrática e igualitária cai por terra e se asfixia nos escombros, nas reminiscências do que de pior aconteceu no passado. Avante brasil rumo ao futuro do pretérito. Abismo-se! Abisma-me!
Voltamos a trilhar o caminho da moralidade, do preconceito e dos cárceres fantasmagóricos de décadas passadas. Hoje esse remake se apresenta em ações mais passivas e nem por isso menos castradoras e limitantes. Coisas que vejo em programas, novelas e livros são inimagináveis se contextualizadas no agora. Dos cigarros acesos nos clássicos da teledramaturgia, do champagne estourado por Norma Bengell celebrando a queda da misoginia no Roda Viva de 1988, das cenas de sexo intensas e verdadeiras (como ele é) nos filmes e peças, da transgresão que regia as produções artísticas da época. Como o ACV que virou AVC num anagrama que altera a ordem das coisas sem alterá-las, a mudança nas outras instâncias de poder é uma regressão histórica institucionalizada por mitos, omissões e um discurso colonizador.
A história regulamentada é nossa mas não nos pertence. É usufruto de quem detém o poder e a partir dele faz do seu papel a parte principal do fato e da sua voz a verdade absoluta de um estado contínuo de pacificação e normalidade.
O normal nunca foi novo. Ele é velho, cheira a naftalina e tem sangue nas mãos.
Felipe Ferreira
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