Coletivo Indra

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24 de fevereiro de 2022: Rússia, Ucrânia e Otan

Metrópoles

“Na guerra, a verdade é a primeira vítima”

Ésquilo

No dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia iniciou ataques à Ucrânia que deixaram a comunidade internacional em alerta. Três dias antes, Arábia Saudita tinha bombardeado o Iêmen, mas para lá as demonstrações de solidariedade não tiveram o mesmo volume que as direcionadas para o povo ucraniano.

Um detalhe importante é que a Arábia Saudita é aliada dos Estados Unidos da América (EUA). Pouco mais de uma semana antes da Rússia cometer o crime de invadir um país soberano, o Estado de Israel bombardeou uma cidade ao sul de Damasco no dia 16 de fevereiro de 2022. 

Pois bem, vamos direto ao ponto: tratar da invasão da Ucrânia não pode ser um raciocínio feito em cima de dicotomias ingênuas que dividem o mundo entre mocinhos e bandidos. Vamos por partes, primeiro para compreensão do cenário internacional e das disputas entre ocidente – leia-se EUA e Europa ocidental – e Rússia e China, não podemos nos manter em ideias fantasiosas da luta do Bem contra o Mal.

Não tem santo e nem demônio, mas, países com interesses estratégicos em disputa.

Vamos voltar para o ano de 2014, após protestos, apoiados pelos EUA e todo ocidente, os conflitos entre separatistas e nacionalistas ficaram mais profundos, na ocasião o presidente ucraniano Viktor Yanukovich - que era apoiado pela Rússia de Vladmir Putin foi deposto. O nacionalismo ucraniano ganhou suporte de torcidas organizadas de clubes de futebol, um discurso inflamado foi incorporado e criou um ambiente de extrema direita em que “Nós contra eles” foi sinônimo os “Bons e justos” contra os “Maus e corruptos”, ou seja, a receita certa para fazer política de modo errado.

A situação ficou ainda mais tensa no leste da Ucrânia com conflitos armados. Então, após meses de guerra, um acordo chamado de Protocolo de Minsk  foi assinado por representantes da Ucrânia, da Rússia e de duas Repúblicas populares, a de Donetsk e de Lugansk. O cessar fogo aconteceu em 05 de dezembro de 2014.

Os governos seguintes na Ucrânia fizeram um movimento de aproximação do ocidente, o que foi radicalizado com a eleição em 2019 do comediante Volodymyr Zelensky , um político inexperiente caracterizado pelo discurso fácil:

“ Nós, os honestos e justos contra os corruptos e malvados”.

O presidente ucraniano eleito Zelensky insistiu em entrar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e num discurso nacionalista sensacionalista, repetindo clichês e ideias antidemocráticas da campanha. Basta dizer que um vídeo da sua campanha, ele entrava no congresso ucraniano metralhando:

“ Gente corrupta e sem caráter”

Ora, numa democracia não se pode defender o fim das instituições e propor o poder centralizado nas mãos de uma pessoa “iluminada pela honestidade”. O que um político com esse perfil pretendia sem reconhecer o Protocolo de Minsk e insistindo em entrar para a Otan?

É preciso dizer que a Otan nasceu em  04 de abril de 1949, com o objetivo explícito de conter o avanço da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e dos aliados do leste europeu. O cenário geopolítico estava polarizado entre Estados Unidos da América (EUA) e URSS. Mas, 40 anos depois, o muro de Berlim foi derrubado e o cenário mundial começou a mudar. No final de 1991, a URSS chegou ao fim. Para que Otan com o fim da guerra fria? Óbvio que as tensões não cessam e a China começava a se tornar uma potência promissora, crescendo constantemente desde reformas econômicas de 1978[2], nos anos 1990 já dava sinais nítidos do que seria no século XXI.

É preciso dizer que, quando a Otan surgiu, era formada por 12 países (Bélgica, França, Noruega, Canadá, Islândia, Holanda, Dinamarca, Portugal, Itália, Estados Unidos, Luxemburgo e Reino Unido), hoje são 30 ( Estados Unidos, Canadá, Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Reino Unido, Grécia, Alemanha, Espanha, Polônia, República Tcheca, Hungria, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Croácia, Albânia, Turquia e Macedônia).

A Otan foi ampliando sua zona de influência colocando sob suas asas países que antes compunham o bloco soviético e nações aliadas. Não era o caso de a Otan fechar as portas depois do fim da URSS? Por que admitir novos membros? Jogo geopolítico, a supremacia do ocidente precisa ter muitos aliados e neutralizar os seus rivais. Porém, se não existia um acordo formal, o fim da URSS trouxe um pacto tácito para não ampliar membros da Otan.

A expansão da Otan não ocorreria sem consequências, só uma pessoa ingênua acreditaria nisso:

“Vamos expandir a Otan e vai ficar tudo bem”.

Óbvio que a Rússia de Putin comete um crime ao invadir a Ucrânia – não custa repetir isso. Não me posiciono a favor da quebra dos protocolos da Organização das Nações Unidas (ONU): um país soberano não pode ser invadido. Mas, a Otan não pode ser desresponsabilizada, atos têm consequências, porque ela se movimentou com intenção de isolar a Rússia, para evitar sua expansão econômica, a estratégia foi simples transformar as ex-repúblicas socialistas em aliadas militares.

A entrada de países do cinturão báltico deixou a Rússia com seus interesses estratégicos na região bastante ameaçados. Daí, quando o comediante Zelensky se tornou presidente, o reforço da obsessão em tornar a Ucrânia membro da Otan criou embaraços ainda mais sérios.

O presidente que era comediante ainda ordenou ataques severos às regiões separatistas e, mesmo após o Protocolo de Minsk, não reconheceu Donetsk e Lugansk. Minha avaliação estratégica, para a Ucrânia custaria menos reconhecer essas duas repúblicas e declinar do interesse de entrar na Otan, chamar a Rússia para a briga não era uma opção que devia sequer ser considerada.

Putin fez uma leitura geopolítica de que estava na hora de dar um basta. Afinal, com o fim da guerra fria, por que a Otan teria interesse em ampliar tanto assim o número de membros? Otan cogitou até a Georgia entrar no clube, país que também faz fronteira com a Rússia.

Outros fatores se mostram nessa equação cheia de complicadores, o ocidente com suas crises internas. Vale destacar o Brexit (British exit - saída britânica), a União Europeia estarrecida com a decisão do Reino Unido ter assinado a saída do bloco em 31 de janeiro de 2020. O que enfraqueceu o projeto de uma comunidade político-econômica de países europeus ocidentais. Por outro lado, os EUA preocupados com o crescimento econômico da China que, no início da segunda década do século XXI, já dava sinais que se tornaria a maior economia do mundo.

Nesse cenário marcado por diversos interesses políticos, disputas comerciais e preocupações econômicas, a Otan se tornou um braço armado de disputas econômicas entre EUA, União Europeia, Reino Unido contra Rússia e China. No final de 2021, Putin não tinha dúvidas, a Ucrânia continuaria pleiteando entrada na Otan, dificultando ainda mais as movimentações russas. Afinal, o acordo básico dos membros da Otan é simples, se um país for atacado, todos os outros entram em cena para dar suporte.

O que está em jogo? Poder, envolvendo transações financeiras dos títulos de bancos públicos, produção e comercialização de petróleo e gás e o desenho das zonas de influências políticas. Ao mesmo tempo, o presidente estadunidense eleito em 2020, Joe Biden, teria demonstrado fraqueza como player com a retirada das tropas do Afeganistão.

Em certa medida para compensar a perda de controle do Emirado Islâmico do Afeganistão, nada mal estender sua influência a mais países que faziam fronteira com a Rússia. Ora, essa proposta não ficaria sem resposta. Vladimir Putin sabia que nada poderia pará-lo em fevereiro de 2022. A demonstração de força era fundamental para demarcar o seu lugar como potência mundial influente.

            É preciso dizer que Putin rompeu acordos internacionais e não agiu bem na madrugada de 24 de fevereiro, ordenando os ataques à Ucrânia. Mas, quando o príncipe herdeiro que governa a Arábia Saudita, Mohamed bin Salma, ordenou ataques ao Iêmen e não foi alvo de tanta indignação.  No ano de 2011, EUA invadiu a Líbia. Qual a diferença de Putin em 2022 para Barack Obama, presidente dos EUA de 2009-2017 em 11 anos antes ordenando ataques ao país africano?

Ou quando George W. Bush, presidente dos EUA de 2001 a 2009, ordenou ataques ao Iraque?  Os EUA e a comunidade internacional estavam convencidos de que os líderes Muammar Muhammad Abu Minyar al-Gaddafi da Líbia e Saddam Hussein Abd al-Majid al-Tikriti do Iraque eram autocratas perigosos.

A pergunta é: por que alguns autocratas são tolerados e outros, não?

Zelensky não é exatamente um exemplo de paladino da democracia, ele forçou a prisão de opositores como Petro Poroshenko, ex-presidente da Ucrânia[3]. Mas, em relação aos interesses da Rússia, algo paradoxal aconteceu. Putin deu um motivo para que a Otan reencontre o seu objetivo de existir, se a estratégia russa era enfraquecer o bloco europeu e desarticular a Otan, conseguiu o inverso.

As insinuações de que EUA e Reino Unido teriam simpatia pela ideia da Suécia e da Finlândia – países neutros – como membros da Otan começaram a sair do mundo das ideias. No início de março de 2022, motivada pela invasão russa, a opinião pública na Finlândia a favor da entrada do país no bloco militar saltou de 19% em 2017 para 53%[4].

Pois bem, não temos mocinhos e bandidos, mas, interesses estratégicos geopolíticos e econômicos em escala planetária. A guerra poderia ter sido evitada? Sim. A Ucrânia poderia ter declinado de fazer parte da Otan. A Otan poderia ter acenado que não aceitaria membros novos e não ter colocado no clube países como Polônia, República Tcheca, Hungria, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Croácia, Albânia e Turquia.

Esses países eram aliados da Rússia que perdeu zona de influência. Ora, com isso, não estou a dizer que Putin está certo. Mas, Joe Biden, presidente dos EUA, e, o primeiro-ministro do Reino Unido, não deviam esticar a corda e acenar para a Ucrânia colocando, como diz o ditado, “mais lenha na fogueira”.  Outra coisa, a Rússia tentou, por algum tempo, se aproximar mais da União Europeia, mas as políticas econômicas do ocidente não tinham abertura para uma  agenda interessante para os russos.

Se Rússia atacar algum país membro da Otan, EUA, França, Alemanha e Reino Unido ficam obrigados a entrar em ação, liderando os outros integrantes da aliança militar contra a Rússia. Se algum país da Otan entrar em confronto direto com a Rússia, Vladimir Putin pode acionar algumas das ogivas nucleares para demonstrar que não está brincando de guerra. Daí, EUA também demonstraram sua força.

A China pode se sentir inspirada a dar apoio a Rússia e o mundo como conhecemos vai deixar de existir. O melhor para a vida no planeta é acalmar os ânimos, o papel seria da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas, a entidade internacional também reflete os conflitos globais e não é exatamente uma instância imparcial e desprovida de interesses geopolíticos.

Eu não tenho dúvidas, a invasão russa é um horror, o povo ucraniano se torna vítima. Mas, o povo do Iêmen também, sem contar os mais diversos conflitos e guerras civis no continente africano – em 2021 e até fevereiro de 2022, países como Mali, Guiné, Sudão e Burkina Faso foram alvos de golpes militares e os clamores internacionais pelo bem da população civil circulam em baixa frequência.

Quantas pessoas que leem este texto, assistiram vídeos ou leram matérias a respeito do Iêmen, Burkina Faso, Sudão, Mali e Guiné nos primeiros dois meses de 2022? A comunidade internacional não deu tanto destaque para a situação que essas populações têm passado desde que forças militares tomaram seus países, tampouco, as movimentações de ajuda humanitária ocuparam noticiários no mês de fevereiro de 2022. Por que grupos paramilitares no leste da Ucrânia interessam mais do que em outras regiões do planeta? Por exemplo, a Nigéria convive com conflitos separatistas por décadas[5].

É razoável concluir que a situação deflagrada em fevereiro de 2022 é diferente. Mas, por que, se nenhuma vida deveria valer mais do que outra? Ora, Rússia contra Ucrânia tem um pano de fundo diferente, interesses dos EUA, da União Europeia e do Reino Unido somado a um arsenal de armas nucleares sob os cuidados de Vladimir Putin.  De qualquer forma, Putin não é único vilão da história. Nos jogos de poder mundiais, nós temos vilões para todos os gostos.

Mas, como o caso aqui não é descobrir quem é o vilão mais “feio e perigoso”, afinal todos oferecem seus riscos. Existe um problema anterior que está na base de tudo, o desprezo pela vida que orienta a agenda geopolítica de todas essas potências mundiais, há muito que o dinheiro e o poder significam muito mais do que gente morrendo em meio a explosões.  Mas, a guerra é coisa séria e não deixa de significar falência da diplomacia.

Portanto, é o momento em que a guerra se faz por vários meios. O pedido que o presidente ucraniano Zelensky fez para que o ocidente tirasse a Rússia do SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais foi atendido por EUA e União Europeia. A retirada da Rússia do SWIFT significaria deixá-la fora das transações e compensações bancárias internacionais, criando condições para uma recessão mundial. No mundo, A FIFA (Fédération Internationale de Football Association). Federação Internacional de Futebol)e a UEFA (Union Européenne de Football Association), União das Associações Europeias de Futebol, excluíram a seleção e clubes russos das competições internacionais. São mais custos de guerra.

Por fim, não consigo deixar de lembrar do filme Don’t look up (Não olhe para cima)[6] em que, por motivos absurdos, a vida de todo planeta é colocada em risco de extinção. O problema de toda guerra é que sabemos como começa, mas, ninguém sabe como termina. De qualquer modo, o Ocidente e Rússia precisam se acertar. Pensando nisso, voltamos à constatação de que o caminho mais seguro para o mundo é um sistema global de poder multilateral para que o equilíbrio de forças não coloque a humanidade em embaraços fatais.  

 Renato Noguera[1]

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[1] Doutor em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), escritor e celebrante de casamento.

[2] https://www.scielo.br/j/rep/a/F3rdpjPK4Jf8cq49BjtXpKN/?lang=pt

 

[3] https://cnnportugal.iol.pt/petro-poroshenko/ucrania-ex-presidente-poroshenko-fica-em-liberdade-apesar-da-acusacao-de-alta-traicao/20281231/61e828940cf21847f0a61080.

[4] https://www.oantagonista.com/mundo/maioria-inedita-na-finlandia-defende-entrada-do-pais-na-otan/

 

[5] https://www.dw.com/pt-002/nigéria-governo-declara-terrorista-o-movimento-separatista-do-biafra/a-40540855.

[6] https://www.youtube.com/watch?v=c1nToClX_3w