A importância da defesa coerente da ordem democrática justa
Um dos temas que subjazem muito daquilo que humildemente pretendo expor aqui quinzenalmente tem a ver com a busca pela manutenção de uma postura coerente acerca de determinada posição. Com isso, busco olhar de forma crítica para aquilo que por vezes parece ser benéfico, ou que acolhe a determinado anseio no curso prazo, mas que pode já trazer em si perigos futuros, ou consistir na abertura de precedentes indesejados. Essa postura, sem dúvidas, por vezes nos coloca numa linha tênue e de difícil de se manter.
Foi dentro dessa visão, por exemplo, que propus a discussão acerca dos inquéritos em trâmite perante o STF, especialmente aquele que investiga fake news, dentro do qual, agora, foram suspensas as contas de Twitter de investigados. Que fique claro, não é ser a favor de quem divulga esse tipo de “notícia” e adota essa postura desonesta, mas é buscar que seja preservada a lisura do processo investigatório-punitivo na forma como previsto no texto constitucional. Leonardo Sakamoto escreveu em uma de suas colunas uma postura crítica a essa mais recente decisão, apesar dele próprio ser vítima dessas notícias falsas. Ou seja, o que se questiona é a forma pela qual pretendemos combater um problema, especialmente de olho no futuro e suas decorrências.
Um exemplo para isso é o da operação Lava jato e o que ela poderá se tornar num futuro breve. Para muita gente ela representou um marco essencial e necessário no combate à corrupção no país. Pela primeira vez, muita gente assistiu políticos e empresários de alto escalão sendo presos e constrangidos pela justiça. Aí reside o problema, no constrangidos. Para muitos, a postura adotada pelo então Juiz Sérgio Moro e os membros da força tarefa do Ministério Público era a única possível para que os resultados pudessem ser alcançados. O próprio a juiz defendia, por meio de um famoso artigo que publicou a respeito da operação italiana mãos limpas e as estratégias utilizadas por lá. Os fins justificavam os meios.
Anos depois do início da operação, as mensagens vazadas pelo The Intercept confirmaram o caráter, não só político, mas pouco afeito ao respeito da estrita legalidade e do princípio da paridade de armas, ou seja, que vítima e acusação estão em posição de equilíbrio em um processo, e que torna possível o exercício da ampla defesa.
Os efeitos e imagem dessa operação foram as ondas na qual o deputado do baixo clero e personagem de programas sensacionalistas surfou para chegar ao planalto. De verdadeiramente favorável a ela com certeza não tinha a nada e seu cada vez mais nítido envolvimento com as corruptelas de gabinete – como noticiou a Folha a respeito das demissões e recontratações de funcionários - e, com maior gravidade, com as milícias cariocas, mostram que essa adesão foi mera fachada que o catapultou à presidência. O único casamento verdadeiro aí (para usar uma metáfora corrente a JB) é o desrespeito ao sistema e aos direitos e garantias previstos constitucionalmente.
Tanto procuradores da força tarefa, quanto o próprio juiz deram diversos exemplos de atuação política indesejada, ao se pronunciarem contra integrantes dos outros poderes e da cúpula do Poder Judiciário, tudo sob o manto incriticável e moralmente superior do “combate à corrupção”. Quem em sã consciência poderia ser contrário a isso? Com isso, diante do apoio irrestrito de muitos a esse modus operandi persecutório, que deslegitima o sistema e nega as garantias previstas constitucionalmente, estava aberto o caminho para a boiada bolsonarista passar, com todas as suas pretensões antidemocráticas e, porventura, criminosas.
Agora, há uma verdadeira disputa de poder entre a cúpula do Ministério Público a força-tarefa da operação, que visa a redução da autonomia dos integrantes desta e, conforme denúncias na imprensa, parte deles estaria sendo investigada por sua atuação profissional de forma não transparente. Além disso, há suspeitas da tentativa de interferência política da cúpula do Ministério Público no próprio mérito das investigações, por finalidades também pouco explicadas.
Em suma, daquele serviço prestado pela Lava jato e que levou muitos a seu apoio incondicional, cujos métodos, repita-se, consistiam em muitas práticas contrárias a ordem jurídica vigente e aos direitos individuais, só restará isso mesmo, pois é o que encontra eco no projeto de poder autoritário e vigente no país. A bandeira do combate à corrupção será destruída de dentro, conforme parece demonstrar o esforço do atual Procurador Geral da República para que isso aconteça, calcando-se, ironicamente, num discurso de combate aos excessos da operação e da necessidade de controle dos procuradores lavajatistas.
Daí porque reafirmo a importância de sempre se manter uma postura coerente e em defesa da ordem jurídica justa e democrática, mesmo que isso possa parecer difícil de se digerir num primeiro momento, ou contrarie nossos interesses imediatos. Quando se trata do combate à criminalidade e especialmente da corrupção, o ideal é que os culpados sejam devidamente condenados e os inocentes libertos. Por sabermos que o sistema é humano e não imune as falhas, se torna preferível ver um culpado solto a um inocente preso, sendo certo que também é fundamental que um culpado seja condenado apenas de acordo com os termos constitucionais e legais a que ele seja condenado em razão de investigações mal conduzidas e em processos de tramitação parcial e duvidosa, abrindo precedentes que coloquem em risco os direitos de todos.
Arthur Spada
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