A impotência do super-homem
Há uma cena clássica no filme Superman, de 1978. O super-homem, quando sabe da morte de sua amada Louis Lane, cheio de dor e impotência, voa com todas as suas forças em sentido contrário à rotação da terra. Com isso, consegue voltar no tempo e salvá-la. Acabam ambos voando, abraçados, e plenos de amor.
Lembro dessa cena ainda emocionado com a partida de uma grande amiga. Ela tinha acabado de completar 50 anos. Morou 15 anos fora do Brasil, em Londres, Roma e em Paris. Pude visitá-la algumas vezes nesse período e sempre relembrávamos inúmeros momentos da vida juntos, pois éramos amigos desde a adolescência, em Santa Maria. Durante essas visitas, especialmente nos últimos anos, ela falava da vontade que tinha de voltar a morar no Brasil.
Havia um sentimento de não pertencimento que não a abandonava. A mesma sensação que vários amigos mencionam quando moram fora. De que, vistos como estrangeiros, têm que provar duas vezes a própria competência. Entendo como algo parecido com ser negro aqui no Brasil: ter, diariamente, sua cidadania negada por preconceito.
Para sentir-se mais próxima, minha amiga vivia apaixonadamente as reviravoltas da política brasileira. Talvez com mais paixão do que muitos de nós que seguíamos vivendo aqui. Uma forma de mitigar a distância que a exasperava.
O fato é que quando ela conseguiu voltar para o Brasil, tínhamos acabado de sofrer o golpe de 2016. E este país nem de longe parecia com aquele que, no período que morou fora, ela acompanhava pelos noticiários.
Já morando aqui, acompanhou as eleições de 2018. Mergulhou no debate político com qualquer pessoa que encontrava: caixas de supermercado, pessoas na fila do banco, atendentes dos bares. Não conseguia pensar em outra coisa. Tinha um sentimento de urgência que a desesperava quando percebia que o apoio político, fosse qual fosse, vinha desacompanhado de uma reflexão mais profunda.
Durante este ano de 2019, a violência, a censura, a ignorância propagadas pelos governos que aí estão, tanto no município do Rio, quanto no estado e na presidência, foram ficando insuportáveis para ela.
No tempo em que morou em Paris, fez um doutorado em filosofia ligada ao cinema. Ou seja, sua vida profissional girava em torno de áreas duramente atacadas por esses governos: a pesquisa acadêmica, o ensino nas universidades, a filosofia, o cinema, a arte. Sua excelência, conquistada em anos de dedicação, não encontrou lugar no país comandado por trogloditas e religiosos de ocasião.
Ela não aguentou. E partiu.
Também podemos acrescentar na lista das maneiras de matar um cidadão brasileiro, a falta de investimento nos hospitais públicos que, muitas vezes, levam ao descuido. Não porque o SUS não é bom, ao contrário, ela fazia questão de divulgar as várias vezes que foi muito bem atendida na UPA de Copacabana, onde morava. Mas quando necessitou de um atendimento mais complexo, enfrentou um hospital sobrecarregado, desfinanciado, desamparado pelos políticos que defendem os empresários da saúde privada.
Então, para mitigar um pouco a dor de uma perda tão precoce, lembro do seu bom humor, recurso a que eu apelava quando as conversas políticas ficavam muito intensas. Da sua coragem em desbravar o mundo. Da sua hospitalidade. Da sua doçura quando estava ao lado dos que amava. Do seu desapego material. Do seu acolhimento aos que necessitavam de ajuda. Do seu amor pelas plantas. Da sua risada deliciosa. Do seu brilhantismo intelectual. Do seu olhar amoroso e acolhedor.
Mesmo assim, impossível não sentir a impotência do super-homem. Queria muito dar voltas na terra para voltar no tempo e entender os sinais de tristeza profunda que ela demonstrava. Mas, infelizmente, essa onipotência só existe na ficção ou na nossa fantasia.
Renato Farias
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