Coletivo Indra

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A linha da delicadeza

Desde criança, estar em um grupo formado apenas por homens heterossexuais, me causa desconforto. Suscita uma necessidade de estar atento aos meus gestos, a minhas palavras, até mesmo aos meus pensamentos. Como se houvesse uma linha que não pudesse ser cruzada. Caso ousasse cruzá-la, seria alvo de chacota, olhares reprovadores, quando não de alguma forma mais explícita de violência. Essa linha eu chamo de linha da delicadeza.

A medida em que fui crescendo, fui sendo obrigado a criar um mundo próprio, onde ninguém entrava. Inspirado pelo cinema, colecionava imagens de cartazes de filmes recortados de jornais e criava minhas próprias histórias. Nelas não havia violência, ninguém tinha que se preocupar em esconder o amor que sentia e a beleza brotava do chão como flores na primavera.

Mas a fantasia, que nutre em segredo a alma dos que são “fora dos padrões”, precisa de apoio no mundo real, especialmente quando chega a adolescência. E, nos rincões do interior gaúcho, nos anos 80, um garoto de 15 anos era levado para a zona do meretrício, pois era chegada a hora de perder a virgindade como um macho de verdade... 

Essa história, provavelmente, não é só minha. E, quando nos sentimos assim, deslocados, como tentativa de sobrevivência, intuitivamente, procuramos aqueles que sentem algo parecido conosco. E, assim, encontramos os guetos que se, num primeiro momento, são a salvação, pois nos dão a sensação de pertencimento, com o tempo se tornam redutores, pois é das diferenças que a beleza da vida precisa para ser mais potente.

Chega, então, a hora de escolher uma profissão. É quando grande parte daqueles que sentem necessidade de dar asas à sensibilidade, escolhem seguir uma carreira artística. Afinal, através da arte podemos acessar as nossas delicadezas e transformá-las em obras que expandem o mundo interno das pessoas. Basta lembrar de quando alguma obra de arte nos tocou profundamente: a sensação de expansão da alma que experimentamos.

Felizmente, hoje posso comemorar o fato de que um dos retornos mais frequentes que ouço, quando alguém assiste algum espetáculo que dirigi, inclui a palavra delicadeza!

Mesmo assim, no dia-a-dia, não é fácil manter-se alheio à competitividade masculina. 

Em momentos sociais descontraídos, festas, reuniões de trabalho, o que seja, em algum momento onde os homens se reúnem, geralmente surge uma fala maldosa sobre mulheres ou gays. Ou que revela a competição para ver quem é o mais forte: a eterna disputa de “quem tem o pau maior”. Ou, acredite, “de quem goza mais longe”. Sim, na juventude, já fui obrigado a participar desse tipo de competição também.

Tenho sempre a impressão de que o diálogo masculino, por mais inofensivo que possa parecer, esconde algum tipo de competição. Algo como a necessidade de dizer a última palavra, de ser o que traz a solução para o problema em questão, ou o que conta a história de maior bravura.

Não quero generalizar, pois existem mulheres pouco sensíveis também. E, felizmente, homens que não têm medo da sua sensibilidade. Um deles, inclusive, acaba de estrear nesse blog como colunista: Alê Girão. Seja bem vindo, Girão, pois homens heterossexuais que ousam cruzar a linha da delicadeza são fundamentais na luta contra o machismo. 

Pelo que Alê escreveu, a pressão de corresponder aos padrões ditos masculinos oprime não só as mulheres, os homens gays e as pessoas trans, mas, também, os próprios homens heterossexuais.

O que me leva a perguntar, então: a quem serve esse pavor da delicadeza?

Renato Farias

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