Coletivo Indra

View Original

A polêmica da Cloroquina: entre ciência e política

“Uma Investigação, Doutor Samarro em seu laboratório, 1897 de Joaquin Sorolla

A pandemia mundial que nos abateu nesses primeiros meses de 2020, tem extrapolado o conflito entre ciência e política, especialmente no que tange a utilização dos medicamentos a base de Cloroquina como forma de tratamento para o COVID-19. Não há consenso na comunidade científica a respeito da eficácia de tal remédio especificamente para o tratamento dessa doença, o que não impediu que Donald Trump defendesse publicamente a utilização de tal remédio, como se tratasse de uma possibilidade certa de cura, o que foi seguido pelo presidente brasileiro.

Em razão disso, os partidários mais aguerridos do último passaram a defender o uso desse composto pelo sistema público de saúde e que, aqueles que se opunham, tinham apenas a intenção de que a pandemia continuasse, para que o abalo a economia fosse prolongado e assim pudesse ser prejudicado o mandato do presidente.

Sobre esse tema, é interessante voltarmos aos ensaios de Max Weber, “Ciência como vocação” e “Política como vocação”, de mais de um século, os quais foram reunidos no mesmo volume em 1919*. Em cada um deles, o Autor discorre a respeito das práticas de cada um desses campos da atividade humana e acerca das disposições adequadas para o seu exercício. 

Em Ciência, Weber estabelece que a vocação do cientista é condicionada pelo alto grau de especialização que esta atingiu, que também deve guiar os anseios internos do pesquisador. Este, deve renunciar à pretensão de responder a tudo e de dar conta de toda a realidade, obrigando-se a perseguir um objetivo específico, com paixão na busca de respostas que lhe permita experimentar a “experiência viva da ciência”, para que somente assim seu trabalho tenha algum valor.

Além disso, a obra do cientista é destinada a ser superada constantemente. Isso porque, ela permite que surjam novas indagações que farão com que envelheça e seja ultrapassada. A cada trabalho concluído, outros avançarão ainda mais. E é assim é que o progresso do conhecimento, e em decorrência o da sociedade, caminham.

A ciência, permite o domínio técnico da vida e contribui para que se tenha clareza dos fatos e, a partir de seus métodos, pode demonstrar quais serão os prováveis resultados decorrentes das ações adotadas para lidar com eles. Todavia, não é o papel do cientista ir além de justificar a necessidade da escolha. Aliás, ele deve compreender que existem fatos desconfortáveis ou desagradáveis, mas que a eles, não pode impor sua convicção pessoal; deve apenas olhar com objetividade e os demonstrar tal como o são. Não lhe cabe dar sentido à vida ou ordenar fatos contraditórios.

Já para a política, Weber compreende ser necessária a existência de três características para o homem público: paixão, senso de proporção e senso de responsabilidade. A paixão está relacionada com a devoção a uma causa e propósito de realização – essa se assemelha com a do cientista. O senso de proporção demanda que o homem público não seja dominado pelos fatos, sabendo manter distância das coisas e das pessoas, para que possa agir com clareza. O homem político deve nutrir-se de suas paixões, mas também ter a capacidade de dominar sua alma, quando assim for necessário.

A responsabilidade, se liga ao conjunto de valores que vão orientar a sua decisão, a partir da posição que ocupa e dos instrumentos que tem a sua disposição, além de estar ciente da consequência de seus atos. A ética da responsabilidade demanda que o político se responsabilize pelos seus atos. Esta se contrapõe à ética da convicção. Aquele que age por convicção, não está atento aos resultados de sua ação, mas se conduz por aquilo que acredita ser o seu dever. A responsabilidade, entretanto, demanda que as convicções pessoais sejam afastadas, quando for necessário alcançar um determinado resultado em benefício da coletividade.

Em resumo, o que ambos ensaios de Weber demonstram é que existem fronteiras bem marcadas entre o campo da ciência e o campo da política. A ciência tem a capacidade de descrever os fatos e de demonstrar os prós e contras de determinada decisão para lidar com eles, mas a escolha definitiva cabe àquele que exerce a política, que lidará com as consequências, boas ou ruins, do caminho que for seguido. Todavia, essa escolha não é livre, mas pressupõe que seja observada a ética da responsabilidade, ou seja, que se esteja atento a consequência dos atos.  

Aliás, nem a ciência está desprovida do agir responsável – os trágicos experimentos eugenistas praticados na Alemanha na Segunda Guerra Mundial são exemplo contundente – como também não cabe ao Político ignorar completamente a ciência, ou pior, pretender transformá-la em política.

Como vimos, são saberes distintos e conduzidos por objetivos distintos. A ciência observa parte da realidade e fornece respostas oriundas dos métodos utilizados a partir daquela observação específica. Não há verdade absoluta e a intenção de uma pesquisa é ser aprimorada ou, até mesmo superada. É com a revisão dos pares que ela se aperfeiçoa. Dificilmente um novo estudo será a resposta definitiva para algo e, portanto, somente com a revisão dos dados, reavaliação e novos experimentos por outros cientistas é que serão confirmados os resultados inicias ou não.

Assim, pela objetividade necessária para o exercício científico, não é desejável que ela seja politizada ou, mais ainda, partidarizada; se isso acontece, ela deixa de ser ciência e passa a ser qualquer outra coisa, que pode trazer prejuízos irreparáveis para a coletividade. Nesse sentido, por conta de sua ética da responsabilidade, não cabe ao político ignorar a ciência, pois é ela que melhor descreve a nossa realidade e que pode fornecer as melhores ferramentas para lidar com a ordenação da vida social. Pelo mesmo motivo, não cabe a ele querer ditar como ela deve ser exercida, ignorando o tempo de pesquisa de aprimoramento dos resultados a partir de novos estudos.

Infelizmente, nem a ciência, tampouco a política são saberes mágicos. Não há soluções fáceis e ambos vão se confrontar com resultados desagradáveis e que demandam esforços indesejados. Se o cientista não pode fornecer as soluções desejadas num curto prazo de tempo, o político deve lidar com a tomada de decisões rápidas e cujos efeitos não serão sentidos de imediato, e mesmo assim será o responsável por suas más escolhas. Mas uma coisa é certa, se tanto um como o outro precisam de paixão para desempenhar suas funções, é a paixão pela Vida humana que não pode ser desprezada. 

Arthur Spada

Instagram @arthurspada

Siga no instagram @coletivo_indra

Recomendo o vídeo (curto) do Professor da FGV, Dr. Cláudio Gonçalves Couto sobre o tema:

https://www.youtube.com/watch?v=ivtzJ1_hMc4 

O livro citado é “Ciência e Política duas vocações” e está disponível em: https://www.amazon.com.br/Ci%C3%AAncia-Pol%C3%ADtica-Duas-Voca%C3%A7%C3%B5es-Weber/dp/8544001009/ref=tmm_pap_swatch_0?_encoding=UTF8&qid=&sr=