A química do sonho na obra de Ryan Murphy
Cresci com o estigma do sonhador. Aquela pessoa sem a menor noção da realidade, visionário habitante de um mundo fantasioso que acha todas as possibilidades possíveis até que o provem o contrário. Esse sou eu. Vivo em estado permanente de sonho pra continuar vivendo. Isso continuará sendo a bússola que guia meus caminhos, minhas escolhas.
Acho que esse descompasso entre o real e o delírio me faz ter um tempo moroso e próprio para algumas coisas, entre elas, para assistir determinadas séries e filmes. Mas no mesmo instante que sigo na contramão do consumo promocional extremo, as obras que tem o sonho como personagem central me conquistam antes do primeiro encontro. Assim foi com “Glee” (2009-2015), “Pose” (2018) e “Hollywood” (2020), ambas capitaneadas porRyan Murphy.
Assisti as três séries com certo fuso horário em relação ao grande público e isso em nada mudou o encantamento e as percepções que elas me proporcionaram. Sempre que leio ou escuto o nome do Ryan em algum projeto, é certo que, independente de carimbarem o selo de bom ou ruim, sucesso ou fracasso, a diversidade estará presente. Me impressiona a forma como ele consegue inserir nas suas narrativas a representatividade de grupos sociais por décadas invisibilizados e ignorados pela indústria. E esse processo de inclusão e equidade característico dos seus projetos rompe o estereótipo comum das representações audiovisuais ao trazer negros, lgbtq’s e outras nacionalidades numa posição de protagonismo. Eles são o corpo, não mais a sombra.
Retratar essas comunidades por diferentes nuances e lugares reforça o movimento de mudança na estrutura representativa dos filmes e das séries, não apenas no redoma da fábrica de sonhos americana, mas na produção audiovisual em toda sua abrangência geográfica. Criar conteúdos plurais, em diálogo íntimo e verossímil com a realidade do público é fundamental na relevância e no alcance da obra. Quanto mais pessoas se reconhecerem em cada história contada, maior será o reflexo do produto na sociedade. Transcender a tela tem se mostrado um caminho cada vez mais natural e necessário para a arte.
As três séries usadas como escopo de análise desse texto, simbolizam a essência filmográfica de um dos principais roteiristas/produtores do cinema e da TV e seu poder de despertar no público sentimentos antagônicos na mesma frequência e intensidade. Seja qual for o que ele provoque em você, é inegável que a LIBERDADE é o alicerce primordial das suas criações. SER aceitx no ambiente escolar e na vida adulta (Glee); SER uma estrela da indústria cinematográfica (Hollywood) ou SER respeitadx e valorizadx por quem se é (Pose). Não importa a época, a geração, o pano de fundo, a liberdade de ser tudo aquilo que queremos e podemos é personagem onipresente das histórias que ele nos conta.
“O sonho é uma questão de química”
A frase do espetáculo “Colônia”, de autoria do dramaturgo Gustavo Colombini, expressa a alquimia cotidiana que compõe o lado onírico da nossa existência. Uma fórmula que Ryan tem domínio e sabe utilizar para cativar o público. Ainda que algumas de suas criações sejam questionáveis nas questões estruturais de roteiro e na condução do arco dramático das histórias que começam bem, mas perdem o prumo no meio das pedras, ele consegue criar personagens fortes, híbridos, que despertam na audiência empatia, afeto e uma identificação que independe da sua função no enredo (mocinho ou vilão). Sem um olhar maniqueísta ele humaniza as personagens fazendo com que elas sejam observadas por um lugar de onde é mais fácil entendê-las do que julgá-las.
GLEE
Pelo que leio e escuto, ouso dizer que é um dos produtos mais questionáveis da sua biografia. A série musical narra o dia a dia nada tranquilo e muito menos acolhedor de jovens estudantes da high school estadunidense. Alguns amam, outros odeiam e eu prefiro fugir desses extremos. Costumo dizer que se na minha época de escola tivesse uma Glee em exibição muita coisa seria diferente e muitas respostas eu teria encontrado sem maiores danos. Ao longo de suas 6 temporadas (sendo as três primeiras as melhores na afinação entre história e música) Ryan nos apresenta tipos distintos, encontrados em todas as salas de aulas, e aborda temas pioneiros - até inéditos - para a época. “Glee” consegue debater bullying, identidade de gênero, gordofobia e racismo com profundidade e equilíbrio entre o humor irônico, o drama e as referências musicais. A série mostra que a convivência diária com as diferenças interfere nas relações sociais e, sobretudo, moldam nossa relação com nós mesmos positiva (auto-estima) ou negativamente (auto-sabotagem). Nos identificamos com algum conflito, com alguma violência sofrida ou que, mesmo já adultos, ainda sofremos. Em cada episódio exercitamos a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, de percebermos que podemos também ser agressores e que por trás de um agressor há sempre um sonho machucado, uma vítima solitária.
HOLLYWOOD
Nos vestígios do pós 2ª Guerra Mundial, mergulhamos no imaginário da Era de Ouro do cinema americano na companhia de um grupo de aspirantes rumo ao estrelato. A busca incansável pela sucesso e pelo reconhecimento revela os bastidores nada ortodoxos por trás da fábrica de sonhos que desperta a cobiça de muitos e é estrelada por poucos. A série descortina as engrenagens obsoletas e segregantes de um sistema enraizado em preconceitos. Atores são “obrigados” a camuflar sua orientação sexual no padrão farsesco do galã e escalações de elenco são sustentadas por critérios racistas e xenófobos. Infelizmente, percebemos que de 1945 aos dias de hoje não mudou muita coisa. Nas diversas cinematografias do mundo esses mecanismos continuam ditando regras e selando futuros.
Para quem trabalha com arte - qualquer que seja a área - a trama de Hollywood toca no íntimo. Revisitamos o dissabor de um não, a frustração da falta de oportunidade ou a revolta de não ser consideradx aptx para um personagem pela cor da pele. O sucesso não é pra todos já que as oportunidades também não são.
O preço do sonho é mesmo se render ao jogo de poder e dançar conforme os caprichos e os desejos mais sórdidos de quem faz o $how?
A escolha por um olhar narrativo otimista numa realidade paralela um tanto quanto utópica, mas possível, é uma forma de mostrar não apenas que a história poderia ser outra se as escolhas assim a fossem, mas também de manter viva a esperança de que as coisas podem mudar, por mais que o sistema pareça imutável e corrompido. Pra que isso aconteça depende de como enfrentamos questões antigas e de não abrirmos mão do sonho que nos move e ainda nos faz acreditar.
POSE
“Pose” é um convite ao desmonte da máscara social que nos ensinam a usar desde o nascimento. A profundidade e as contradições das suas personagens nos faz questionar os valores morais e éticos que regem uma sociedade que discrimina, julga e mata, camuflada no véu de hipocrisia das suas contradições.
No universo LGBTQ+ da cidade de Nova Iorque da década de 80, Murphy aborda com muito luxo e glamour temáticas que se cruzam das suas origens à forma com que são tratadas. Essa interseccionalidade é uma das principais qualidades da obra. As violências sofridas pelas personagens atravessam questões de raça, gênero e classe. No mesmo palco que se fala com densidade das demandas da comunidade lgbtq com a sociedade em geral (racismo, preconceito, machismo) e entre si (a rivalidade entre as casas, o preconceito entre as “filhas” e “filhos”), se propõe um questionamento acerca da maternidade, na transcendência do conceito de mãe no escopo biológico. A mãe que gesta e expulsa tem mais valor que a mãe que escolhe e acolhe (a relação Blanca e Damon)?
As ações das personagens são reflexos sintomáticos das opressões cotidianas, das barreiras sociais que lhe são impostas e de um processo histórico de marginalização. Essa construção humana faz com que o público crie um elo afetuoso e empático que leva a um entendimento do conflito de dentro pra fora, no lugar de fala da personagem, vulnerável aos fatores externos e internos que a compõem. A gente sente raiva de Elektra e na cena seguinte já expressamos amor. Condenamos uma atitude à primeira vista, mas no outro capítulo refletimos e entendemos a motivação para tal escolha. A complexidade inerente a cada sujeito faz da obra transgressora e essencial na compreensão e no questionamento das conjecturas sociais historicamente alicerçadas no falso moralismo e na desigualdade de direitos.
“Pose” faz uma panorama antropológico sem abrir mão da essência de cada pessoa e de como suas vivências, suas peculiaridades e sua verdade são fundamentais no processo de existência, resistência e sobrevivência da comunidade lgbtq+ na efervescência do ballroom ou no silêncio da sua própria solidão.
Na realidade, há dois caminhos legítimos para lidar com o trauma da violência. Reproduzindo a agressão sofrida ou ressignificando ela em amor, em algo bom. No sonho, só há um único caminho. O de continuar sonhando mesmo que acordado para a química continue a pulsar no peito e a manter viva a alma.
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