Coletivo Indra

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Afrogamia parte 1: Amor, fantasia ou intimidade?

Nós vamos começar por uma definição conceitual preliminar e ainda insuficiente. Em uma abordagem afroperspectivista, afrogamia significa que em qualquer modelo de relacionamento afetivo, a intimidade é o eixo estruturante. Nós voltaremos a esse ponto num outro momento.

Para início de conversa, quando o assunto é amor, especialmente a vida amorosa e arranjos de conjugalidade entre pessoas adultas, precisamos deixar explícito que a base teórica está nas sistematizações filosóficas feitas por Orunmilá e Sobonfu Somé. A partir de uma concepção afroperspectivista da vida amorosa, podemos dizer de modo bem direto: o relacionamento opera através da fantasia ou da intimidade.

O que acontece quando um relacionamento afetivo, seja um namoro ou um casamento, uma relação monogâmica ou mesmo policonjugal, está ancorado na fantasia? O que ocorre quando ele é constituído pela intimidade? 

Vamos dar um passo atrás antes de enfrentar essas duas questões.

É importante lembrar que nós estamos trabalhando com os ensinamentos de Mãe Stella de Oxóssi, Sandra Benites, Antônio Bispo dos Santos, Ailton Krenak, Cheik Anta Diop, além de alguns estudos feitos por Pierre Clastres e Jared Diamond. A partir dessas investigações, a afropersectividade define que as sociedades humanas podem ser definidas a partir de nuances de cosmofilia e cosmofobia. Algumas culturas são mais cosmofóbicas, enquanto outras são mais cosmofílicas. Nenhuma civilização é somente uma coisa ou outra; mas, algumas têm muito mais dispositivos cosmofóbicos do que outras.

No livro Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso de Jared Diamond, encontramos exemplos de sociedades cosmofóbicas que foram extintas; o colapso das colônias vikings ilustra bem esse fenômeno. Isso ocorre porque as sociedades cosmofóbicas vivem em estado de guerra permanente, em busca de mais recursos e territórios para dominar. O Imperialismo pode ser entendido como um fenômeno cosmofóbico.

Nas sociedades cosmofílicas, que vivem em busca de confluência com a natureza, tais como aldeias e quilombos no Brasil, a relação com o mundo é de acolhimento.

Vale registrar uma advertência, nós não devemos “romantizar” ou enxergar essas culturas como um fetiche. Elas não são paraísos na terra. As sociedades cosmofílicas não concebem o paraíso e, tampouco, o amor incondicional, elas assumem o conflito e possuem princípios ético-políticos, tais como ubuntu no caso dos povos ndebele, swati, xhosa e zulu e teko-porã dos guaranis e elas não recebem todo estrangeiro como inimigo. Nas culturas cosmofílicas os conflitos são tratados como eventos naturais, ao invés de uma lógica em que os grupos rivais batalham para “vencer”, o princípio reza que todos devem buscar uma alternativa e reconhecê-la como temporária, nos diz o filósofo sul-africano Mogobe Ramose.

Após essa breve digressão, vamos voltar às duas indagações: “O que acontece quando um relacionamento afetivo, seja um namoro ou um casamento, uma relação monogâmica ou mesmo não-monogâmica, está ancorado na fantasia?” e “o que ocorre quando ele é constituído pela intimidade?”.  Pois bem, em contextos afrotópicos, a afrogamia é possível e ela não se opõe à monogamia necessariamente, pelo contrário: num contexto cosmofílico, a monogamia pode ser revolucionária

Porque num contexto cosmofílico, o patriarcado não determina a vida amorosa, o que torna possível que a monogamia não esteja ancorada no controle e na dominação; mas, na intimidade.

Vale dizer que no contexto cosmofóbico, os estudos feministas, dentre outros, ensinam que a monogamia promove o controle, aniquila as desigualdades, ancora-se num modelo cis-hetero-patriarcal-branco, judicializando os afetos. Ora, dessa forma, a vida amorosa acaba sendo determinada por um contrato jurídico em que o bem-estar pode ficar em segundo plano. Pois bem, o que denominamos de monogamia num contexto afrogâmico tem uma nova definição, se quisermos podemos até chamar de afro-monogamia. De qualquer modo, numa cultura cosmofílica, a monogamia é um exercício afetivo de intimidade.

Nesse contexto, todos os outros modelos também são constituídos pela intimidade. Sobonfu Somé descreveu a experiência afetiva da intimidade como um convite do espírito para percorrer um caminho. Em outras palavras, duas ou mais pessoas num relacionamento conjugal podem encarar-se sem precisar fingir ser algo que não são. A compreensão do relacionamento afetivo como intimidade tensiona com a noção de amar como um exercício de fantasia.

É importante compreendermos que as sociedades cosmofílicas convidam para intimidade, enquanto as sociedades cosmofóbicas insistem em reduzir a vida amorosa à fantasia.

Portanto, num contexto cosmofóbico, a monogamia não pode deixar de ser vista como um problema, uma estrutura opressora, castradora e que em lugar de alimentar bem-estar, nutre neuroses e sofrimentos. 

No próximo texto iremos falar como afrogamia é um modelo afetivo que pode ser monogâmico ou não, o que o define não é a quantidade de cônjuges. Mas, o que sustenta o relacionamento. Nas culturas cosmofóbicas o romantismo é um dos eixos chaves da vida amorosa, a fantasia funciona como recurso, ou ainda, a “ferramenta” que organiza e sustenta o relacionamento. Na afrogamia, a intimidade é o que sustenta a vida amorosa. Num relacionamento afrogâmico, ao invés de fantasiar quem somos e quem o outro deveria ser, somos convidados a expressar os nossos sentimentos e retirar as máscaras. 

Renato Noguera

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