Amarás ao teu próximo como a ti mesmo: criminalização da homofobia e o exercício da religião
Em sua coluna da última terça-feira, meu Querido amigo e professor Jean Tetsuji, me instigou a escrever sobre o julgamento perante o Supremo Tribunal Federal das ações que discutem a omissão do Poder Legislativo em criminalizar a homofobia. Aceito o desafio de tecer alguns comentários sobre essa questão, ainda que pretenda me concentrar em seu aspecto jurídico-constitucional, ao contrário de adentrar em pontos específicos dos pedidos formulados nas ações ou sobre o conteúdo dos votos já proferidos – cuja leitura é altamente recomendada. Ao final, pretendo fazer uma breve reflexão sobre a influência do tema no exercício da religião.
Com o fim da ditadura militar, foi instaurada uma nova ordem jurídica no Brasil de índole democrática, cujo marco inicial é a Constituição de 1.988. Ou seja, naquele momento os constituintes estabeleceram uma nova forma de organização do Estado, calcada em novos fundamentos, princípios e com objetivos a serem alcançados. Logo em seu artigo 1º é estabelecido dentre os princípios fundamentais a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III), por exemplo.
Já os objetivos a serem perseguidos estão estampados no artigo 3º, dentre os quais se destaca aqui o de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I), bem como os de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, III e IV).
Isso significa que toda e qualquer atividade a ser desempenhada pelo Estado, seja no exercício de suas funções precípuas ou na edição de leis, deve ter como premissa esses fundamentos e serem norteadas para a conquista de tais objetivos.
Seguindo o modelo de outros países, para possibilitar o alcance desses objetivos e a proteção de direitos, existem algumas questões que foram cristalizadas na Constituição para serem obrigatoriamente criminalizadas, de modo que o Poder legislativo não possui a faculdade de legislar, mas a obrigação, de modo a rechaçar as condutas que afrontem aos interesses e bens jurídicos que merecem essa especial atenção. É o chamado mandado de criminalização.
Como exemplo, são os incisos LXI, XLII do artigo 5º da Constituição:
“XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
Ou seja, embora a edição de leis seja de competência do Poder Legislativo, há matérias que essa função independe da vontade dos legisladores, que possuem a obrigação de atender o que consta no texto Constitucional, sob pena serem considerados omissos.
Nessa situação, cabe ao Poder Judiciário compelir que o Legislativo cumpra sua função, podendo dar uma solução provisória até a definitiva promulgação da lei necessária para a concretização do que manda a Constituição. Isso é o que está no cerce das ações ora debatidas pelo STF, ao se pretender o reconhecimento da mora do legislativo na criminalização da homofobia ou sua equiparação com o crime de racismo.
Ainda que certamente a criminalização das condutas homofóbicas não seja suficiente para resolver a discriminação e preconceito sofrido pela comunidade LGBTQ+, certamente é um grande avanço em termos sociais e, como visto, caminho no sentido de serem atendidos os objetivos da nossa República, como estabelecidos na Constituição. A procedência de tais ações representará, no mínimo, uma vitória em termos de visibilidade e o reconhecimento, cada vez mais sólido, de que não há mais espaço para o preconceito e a intolerância em nossa sociedade.
A oposição ao pedido das ações vem em dois sentidos principais. O primeiro, assenta que não existe mora do legislativo, já que o debate estaria sendo feito e haveriam diversos projetos em trâmite nas casas legislativas que compõem o congresso nacional. Já o segundo - que interessa abordar aqui – diz respeito ao fato de que a criminalização dessas condutas poderia representar afronta a liberdade religiosa, já que seus textos poderiam ser considerados discriminatórios, assim como a contrariedade a consagração da relação de pessoas do mesmo sexo.
É preciso destacar, que o Brasil é constituído como estado laico, ou seja, não adota qualquer religião em âmbito oficial e deve garantir a que os cidadãos possam professar a sua fé – qualquer que seja – com liberdade.
No capítulo dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição determina ser inviolável a liberdade de crença e de culto, além de garantir a proteção aos seus locais e as práticas litúrgicas (art. 5º, VI). Além disso, também prevê a assistência religiosa em entidades civis ou militares de internação coletiva e também que ninguém será privado de direitos por motivo de convicção religiosa. (art. 5º, VII e VIII).
Posteriormente, ao adentrar na organização do Estado, a Constituição veda aos entes federativos “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança” (art. 19, I). Ou seja, não cabe ao Estado subvencionar ou proferir qualquer tipo de crença, tampouco podendo impedir quaisquer práticas religiosas.
É interessante apontar, que a forma na qual os textos normativos se encontram organizados pode parecer irrelevante à primeira vista, mas é de fundamental importância para a sua interpretação, uma vez que possuem uma estrutura própria. Como exemplo, nossa atual Constituição, de índole democrática, logo apresenta os fundamentos do Estado, os objetivos a serem buscados, como visto acima, e em seguida passa a tratar dos direitos e garantidas dos cidadãos fundamentais já em seu artigo 5º.
Em comparação, a Constituição outorgada em 1.967, durante o período de ditadura militar, primeiro versava sobre a organização do estado e de seus poderes para somente trazer os direitos e garantias individuais em seu artigo 150, quase ao final do texto. Para além do local onde dispostos no texto, pouco precisa ser acrescentado sobre a forma como esses direitos eram tratados naquele período.
O que se revela com isso, na leitura da nossa atual Constituição, é que o Estado deve se ocupar em primeiro lugar, com construção de uma sociedade solidária, sem preconceitos e voltada para o bem de todos, enquanto que as religiões se constituem como um direito privado dos indivíduos e assunto no qual o poder público não deve se imiscuir. Isso não quer dizer que a religiosidade seja algo menor, mas tão somente qual deve ser a orientação do Estado ao executar as suas funções.
Não parece ser adequado afirmar que a criminalização da homofobia pode ensejar, em sentido diverso, algum tipo de discriminação ou de afronta a liberdade religiosa ou de manifestação. Evidente, que nenhuma liberdade é irrestrita (o que pode ser assunto para outra coluna), bem como tampouco se pretende impedir o exercício de crença, mas tão somente ampliar o alcance da cidadania e quiçá, de empatia.
Como ponderou o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto no julgamento daquelas ações, o iluminismo e a revolução científica não tiveram o condão de fazer desaparecer o sentimento religioso, o que certamente não ocorrerá apenas com a criminalização da homofobia.
O economista José Carlos de Assis, em seu livro “A Razão de Deus” imagina um Deus criador que não fez do universo e de suas criaturas uma obra acaba, mas que deu a elas a possibilidade também da criar, para que pudesse observar e se regozijar com o espetáculo da criação. Assim, o universo estaria sendo constantemente criado por meio dele, através da liberdade criativa que conferiu aos homens, ou seja, ele participaria desse processo inventivo, e ainda inacabado, por meio dos seres que concebeu. O mesmo aconteceria com a natureza e seus processos probabilísticos, que vemos ao apreciar a teoria da evolução.
Essa ideia parece ser interessante não apenas numa discussão de cunho teológico, mas ao imaginar que esse criador anseia pela evolução e desenvolvimento de sua obra, pois é assim que ele também se realiza, cujo ato supremo, humano ou divino, está contido na capacidade criativa. Aliás, como escreveu o pintor Mark Rothko “É necessário lembrar que só se pode roubar algo (indecifrável) dos deuses mediante a criação.”
Assim, as religiões – suas instituições ou as diversas formas de religiosidade - também estariam destinadas a evoluir e se transformar ao longo do tempo, não para o atendimento de uma obrigação mundana ou social, mas em função desse Deus que defendem, que através da capacidade de criação que teria nos dado, transferiu a parcela mais significativa de sua natureza.
Talvez o desenvolvimento de uma sociedade sem qualquer tipo de discriminação, preconceito e que seja justa e fraterna, seja a obra máxima que esse mesmo Deus imaginou para a humanidade e para a qual devemos destinar nossos esforços.
Arthur Spada
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*A coluna de hoje é ilustrada com pinturas de KEITH HARING, que foi um dos grandes artistas de rua de Nova York nos anos 80, além de ter se destacado como ativista dos direitos da população LGTBQ+. Suas obras tratam recorrentemente do nascimento, morte, e sexualidade.