Coletivo Indra

View Original

“Anagramas Femininos”

Jack Elesbão.

Tive o prazer de trabalhar com ela no antigo Coletivo Ponto Art, hoje Pico Preto (@picopreto), e de ver por dentro sua entrega visceral e arrebatadora no processo de montagem do monólogo “Entrelinhas”.

O que ela faz, o que ela diz e o que ela expressa na sua arte caminha por cada pedaço, cada músculo, cada poro do seu corpo que nos leva junto numa frequência que subverte o óbvio, afirma sua força e reconta narrativas.

 A entrevistada do especial “Anagramas Femininos” é a atriz, dançarina, diretora e produtora:

 Jack Elesbão

KcaJ Oãbsele

 1- Como é sua relação com o tempo? Quais sentimentos e reflexões a fenda entre o passado e o presente te provoca? Seu estado bígamo de permanência e mudança, junto à maturidade que ele traz consigo, te inspira e te transforma numa mulher mais consciente do seu papel, do seu poder e do que seu corpo representa como expressão política, social e cultural?

A minha relação com o passado e com o presente faz parte da minha vida. Isso está tatuado nos meus registros artísticos, inclusive no “Entrelinhas”, eu acho que muitas respostas que a gente precisa ter em relação ao hoje, estão no passado. Os personagens são os mesmos. Eles só foram ressignificados, de forma positiva, de forma negativa, de forma mascarada, manipulada, mas os personagens são os mesmos. A gente consegue ver os capitães do mato, os senhores de engenhos, os escravizados… as mãe de leite, conseguimos ainda ver todos esses personagens que estão lá na história, que deveriam ter ficado lá na história e ainda são reproduzidos nos dias atuais. E enxergar isso e perceber esses personagens me traz uma maturidade e um interesse em viver as consequências desse passado.

Acho que isso hoje é o meu maior ganho enquanto artista, enquanto pessoa, enquanto mãe… Sou eu a buscar esses reflexos do passado. Não tem como desvencilhar essas realidades. A gente tem isso até hoje e isso me inspira a continuar, a querer cada vez mais olhar pra trás.

Pra mim só é possível seguir se eu olhar pra trás, se eu reconhecer esses personagens, se eu puder ver que personagem eu sou na história.

Porque nela também temos heróis (morreram primeiro), heroínas… Nós temos discípulos. Temos tudo! Temos todos os posicionamentos políticos, sociais representados do passado que refletem até hoje no presente. Esse olhar me dá vontade de continuar e de querer escolher que personagem eu sou, de escolher quais personagens eu quero do meu lado.

2- Quais suas referências femininas, na ficção e na vida real, mais simbólicas e atemporais? A Jack de agora consegue olhar para a Jack de anos atrás, criança e adolescente, e ver um reconhecimento nessa digressão? O que uma diria pra outra na possibilidade de um reencontro?

Eu gosto muito… tem muitos nomes conhecidos, escritoras, filosófas, mas eu gosto muito de falar de quem tá do meu lado. Eu acho que a gente precisa se referenciar mais. Tem gente que já está não com o jogo ganho, mas tem algumas ferramentas, já tem mais apoio… Pessoas negras que conseguem dar continuidade ao seu trabalho e pessoas negras que não conseguem, que são filosófas, mas não na formação acadêmica, que são extremamente intelectuais nas áreas delas.

Um grande exemplo que eu tenho e sem ser clichê, é a minha mãe. Ela não tem formação, mas ela é de uma inteligência emocional absurda, tem uma sabiedade na vida absurda e ela é meu maior exemplo porque ela consegue, de fato, transformar a dor dela em amor.

Sem ser romântica, sem ser clichê, sem passar por cima de ninguém. Eu estou falando de fenômeno, real. Eu não consigo não falar da minha mãe, não trazer ela como referência. Eu tenho na minha casa 3 mulheres que são minhas referências, fora minha mãe e minhas outras 3 irmãs. Eu sou a mais nova da casa, somos 5 mulheres ao todo, e elas pra mim são referências de vida. Porque uma coisa é você ter por escrito como fazer, o que se deve, o que eu passei, e outra coisa é você viver a vivência de outra pessoa. Isso é muito grandioso.

A gente perceber as pessoas que estão do nosso lado, perceber essa história, valorizar essa história e referenciar essa história. E pra essas mulheres que fazem parte da minha vida e que eu estou referenciando agora, que são minhas irmãs e minha mãe, elas têm muito a ver com a Jack criança.

Elas são responsáveis por essa criança que existiu. Se eu me reencontro comigo criança hoje, eu diria pra mim o que eu disse quando eu era criança. Vai passar! Você vai superar e você vai ser foda! Eu me dizia muito isso quando eu era criança. Dizia mesmo. E deu certo. Passou, entendi, lido, construo a partir do meu ódio, produzo a partir do caos e eu pude ressignificar essa história com aprendizado e me tornar uma pessoa muito maior.

3- Você busca identificação naquilo que consome? O que você lê, o que você ouve, o que você escreve, o que você performa, o que você assiste, toda essa teia artística, que nos engole pela intensidade de produção, mas que em alguns casos peca pela efemeridade mercadológica, parte de um exercício de reconhecimento subjetivo, que busca dialogar com a demanda coletiva da representatividade de uma história ora não contada, ora mal contada?

Eu busco sim e vou um pouco mais além do “consumir objeto” que é o que a pergunta propõe.

Eu consumo pessoas, com mais intensidade do que eu consumo livro. Eu me escrevo, eu escrevo muito sobre o que eu sinto, sobre o que passa, sobre fases… Eu tenho uma formação autodidata então o escrever faz parte do meu cotidiano, eu preciso registrar. E agora eu ainda quero mais, eu quero uma plataforma com os meus registros.

Eu não sou da área acadêmica, mas eu sou uma intelectual. Eu gosto e quero muito ter esses registros em algum lugar, pensando num legado mesmo. E entendendo muito e falando sobre a minha subjetividade e a subjetividade das outras pessoas.

O mercado ele coloca a gente em grupos, em blocos, em bolhas, mas quando a gente se propõe a viver percebemos que somos indivíduos, que temos necessidades diferentes, que nem toda lésbica, nem todo gay, nem toda trans, nem todo hétero tem a mesma necessidade. Nós temos necessidades, nós temos buscas diferentes. A gente pode se juntar, fortalecer essas narrativas, mas é importante que dentro dessa junção a gente compreenda o indivíduo, o sujeito, a sujeita. Que é onde eu acho que a gente tá falhando um pouco. A gente ainda se prende nas bolhas, nos grupos… Eu entendo que faz parte do nosso processo de se acolher, de ter escuta, mas mais pra frente eu tenho certeza que vamos chegar a conclusão de que as lutas são individuais, as revoluções são individuais, não tem espetacularização nas nossas revoluções, elas são vistas.

O que a gente faz de potente, de revolucionário, geralmente, grande parte desses momentos não tem plateia. Que é onde para o mercado é mais complicado porque estamos falando de números, estamos no período das redes sociais, onde as pessoas querem mostrar o que estão fazendo, e eu não estou fazendo crítica destrutiva, pelo contrário, eu acho que tem postagens, tem publicações que me motivam.

Mas a gente está muito nessa busca. Tem pessoas que não estão nessa busca. Pessoas que, assim como eu, estão mais ligadas à uma revolução que é íntima. E que por ser íntima, ela não é solitária e não é egoísta. Só não tem, plateia. É a gente entender até onde a gente pode alcançar, aquelas pessoas que a gente tem interesse, e transformar isso em ação.

E pra gente poder também ter de volta a possibilidade de falar sobre a nossa história. Eu não posso contar minha história a partir da história de um grupo somente. Eu tenho que contá-la a partir da minha vivência, que pela pluralidade dessas vivências (de outras mulheres pretas, mulheres trans, travestis), não necessariamente, essa pluralidade de vivência em algum momento vamos nos identificar com as histórias. Mas são muitos os fatores que nos singularizam. Família, amigos, trabalho, as nossas escolhas, os nossos medos. Então, essas variantes dizem muito sobre a gente.

4- Entender nossa ancestralidade é peça-chave no processo histórico de afirmação identitária e pertencimento social? Para saber quem somos como indivíduos e como nossas ações interferem no processo de (re)construção social, é importante ouvir e aprender com aqueles que abriram os caminhos pra que nós pudéssemos andar e chegar até aqui?

É importante a gente olhar para trás porque eu acho que isso também foi ressignificado. Olhar para trás é tornar consciente nossa história, nossa existência, a nossa ancestralidade. É importante a gente conhecer, a gente se entender e afirmar essa identidade a partir desse conhecimento, que varia muito, mas a gente precisa ter um conhecimento mínimo básico sobre isso.

É importante ouvir e aprender com essas pessoas, mas também é muito importante ouvir e aprender com quem está no momento. É necessário que a gente faça do nosso passado e do nosso presente a nossa fonte de conhecimento. os jovens têm muito a dizer. Eu tenho 36 anos, eu faço geração tombamento, 7, 15 anos.

É importante que a gente escute, que a gente também veja sabiedade nessas palavras e nessas necessidades que são outras da daquele momento. Porque a inteligência e a expertise de perceber o passado e esse reflexo atual, a gente só consegue perceber esse reflexo do passado através das pessoas que estão presentes. Então, eu não tenho religião, eu sou ateia, eu acredito muito em troca. A minha filosofia de vida, o que eu acredito que pode me religar ao mundo hoje são as trocas.

E essas trocas, pra mim, são feitas com passado e com presente. Eu preciso reconhecer meu passado, minha ancestralidade e eu preciso reconhecer e entender o resultado disso. Que são membros pensantes, são jovens, que estão vivendo um novo requinte de crueldade, e precisamos nos armar de outras formas. O que foi feito no passado como estratégia de jogo de sobrevivência pode não servir para o agora. Os tempos são diferentes. Os tempos de quem está vivendo a violência são outros.

As condições são diferentes. Parece que estamos vivendo bem em vários aspectos, mas não. Esse forjar felicidade, forjar bem-estar está muito relacionado aos dias atuais e isso é de uma crueldade tamanha porque é sobre apagar as violências que a gente viveu e que a gente vive. E só é possível apagar tudo isso, que é a tentativa da branquitude, desse sistema colonial que vivemos, esse apagamento se dá a partir do agora. Eles sabem que já estamos mexendo na história, eles estão tentando apagar o presente porque a história já está posta. Revelamos a verdadeira história. Ela está sendo cada vez mais sendo revelado porque tem muita coisa ainda a ser revelada. Mas já está sendo. Precisamos revelar a história presente. É necessário essa revelação pra que consigamos ter consciência desse corpo nesse espaço, nesse contexto.

Felipe Ferreira entrevista Jack Eslebão

Instagram @ostrafelipe

 Instagram @jackelesbao

 Siga no instagram @coletivo_indra