Coletivo Indra

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Antônio Delillo

Viralizou há alguns meses um vídeo de uma conversa da primeira dama de São Paulo enfatizando que a vida na rua é boa, atrativa e libertadora; concluindo ao final de sua fala, quase debochada, que as pessoas que vivem na rua escolhem viver nesta condição.  

- “Com licença, você tem algo para comer?” Escutei uma voz masculina, que me tirou dos meus pensamentos da manhã.

- “Opa! Sim, claro. Assim que eu terminar de passear com os cachorros, trago algo para você comer.” Respondi.

Sempre aprendi com meus familiares que comida não se nega. Onde come um, come dois ou três. 

No início de abril deste ano, eu conheci o seu Antônio Delillo. Um sujeito bem aparentado, de fala mansa e que praticava o português correto. Não parecia morar há muito tempo na rua, mas naquele momento o conheci na rua. A partir deste dia, eventualmente, o encontrava. E após algum tempo, essa frequência foi aumentando. Diariamente conversávamos e eu lhe disponibilizava um prato de comida. 

Imagino eu, que o seu Antônio, mesmo sorrindo, sem reclamar da dormida, do frio e da fome, não escolheria morar na rua. De fato, até este momento, eu não conhecia a sua história. 

Bom, começamos a nossa amizade. Ele estava sempre querendo me presentear com algo que tinha encontrado na rua e que achava que eu gostaria. Como sabia que eu era veterinária, todo e qualquer livro que ele encontrasse desta área ou de áreas correlatas, ele trazia para mim. Estava sempre falando sobre Deus, recitando e me mandando ler alguns versículos da bíblia. 

Um dia, ele verbalizou que queria fazer contato com a sua família, porque queria voltar para casa. Em um primeiro momento eu estranhei o pedido dele, primeiro porque dentro do meu preconceito estrutural não imaginei que ele tivesse família, e segundo porque eu não sabia por onde começar a procurar. 

Achamos então a sobrinha dele no “instagram”. Ele me fez mandar uma mensagem e eu vou ser bem sincera, desconfiei que ela fosse me responder. Para minha surpresa, ela respondeu e me passou o contato do Sandro, outro sobrinho dele. A partir dai, foi iniciado o processo para seu retorno a Campo Grande/MS, sua terra natal. Por muitas vezes conversei com Sandro, e também com Rosi, irmã de seu Antônio.

As pessoas que praticam a equidade e solidariedade, diferentes da primeira dama de São Paulo, entendem que a moradia na rua está condicionada a uma situação de vulnerabilidade social, já que o nosso país é extremamente desigual. Entretanto, quero chamar a atenção que, em algumas situações, viver em condição de rua pode estar correlacionado a processos de saúde mental.

Foi-me relatado que, de tempos em tempos, o seu Antônio saia de casa sem rumo. Essas saídas ocorriam sempre que ele tinha um contratempo em casa, uma briga ou uma desavença. Às vezes ele dava noticias, às vezes não. O certo é que, em algum momento, ele retornava. Mesmo sabendo que ele queria voltar para casa, eu sabia que não podia ser impositiva com ele. Rosi me alertou que eu não podia pressioná-lo, tinha que deixá-lo decidir, pois ele somente voltaria para casa se pensasse que a decisão havia sido única e exclusivamente dele. No final das contas era isso mesmo. A decisão era dele. 

De acordo com o IPEA (2016), 101.854 pessoas vivem em condição de rua no Brasil. A maior concentração destes, ocorre nas grandes cidades e metrópoles. Dessa forma, sobressai-se a região Sudeste, que abriga 48,89% da população em situação de rua. As justificativas para esta condição são as mais diversas possíveis, entretanto, enfatizo que processos relacionados à saúde mental constituem uma das razões listadas.

Por viverem em vulnerabilidade extrema, física e mental, é importante que haja um esforço maior do Estado para a incorporação deste grupo ao Cadastro Único, o que possibilitaria a adesão do mesmo nos Programas Sociais, tais como transferência de renda e habitação, garantindo parte dos direitos básicos. Da mesma forma, o acesso universal e equânime, previsto no nosso Sistema Único de Saúde (SUS) e pela nossa Constituição, deve ser garantido.

Nesta temática, em 2011, atrelado à atenção básica, foi criado o programa “Consultório na Rua”. Formados por equipes multiprofissionais e itinerantes, o objetivo do programa é garantir o acesso integral à saúde deste grupo populacional, que se encontra em condição de vulnerabilidade. Infelizmente não são todos os estados que possuem estas equipes, o que demonstra ainda o nosso lento caminhar na garantia dos princípios doutrinários do SUS.

O Seu Antônio finalmente retornou para casa no dia 23 de abril de 2020 e, como o destino nos é totalmente misterioso, no dia 07 de junho sofreu um infarto, falecendo no dia 15 de julho. 

Ele era um cara carismático e bondoso. Estava sempre preocupado com as pessoas com quem ele dividia a rua. Eu tenho certeza de que qualquer um de vocês gostaria dele de graça. Existem muitos “Seus Antônios” por esse Brasil a fora. A gente só precisa abrir os olhos, e o coração, para enxergá-los.  

Essa coluna eu dedico a ele.

Que ele tenha encontrado a paz que sempre mereceu. 

Rafaella Albuquerque

Instagram @rafaas28