“ARUANAS” - Ativismo Feminista Reativo.
O Brasil é um país de contradições. Nosso Sistema Único de Saúde (SUS) é um modelo complexo e pioneiro no serviço de saúde pública, mas os hospitais volta e meia entram em colapso pelo excesso de pacientes, pela escassez de suprimentos, pela perda de humanidade. O sistema eleitoral brasileiro é um dos mais modernos do mundo, mas ainda temos dificuldade em compreender o real conceito de democracia e em discernir algozes de heróis. Temos a Amazônia, um dos maiores biomas do planeta, mas não damos o valor que ela merece. Fechamos os olhos para as tribos indígenas que lá habitam e desconhecemos nossa história que entranha a terra, percorre as águas.
Somos orquestrados pela baliza da miscigenação. Povos, etnias, crenças, tradições. A diversidade paradisíaca aquarelada no imaginário coletivo é vendida lá fora no cartão de visita de uma hospitalidade questionável que se camufla num ideal progressista de tecnologia e de desenvolvimento social. O (des)caso da Amazônia faz com que não valorizemos a riqueza imaterial que nos cerca. A cultura de preservação, de consciência sustentável é insuficiente para cultivarmos o sentimento de luta e de pertencimento.
“Aruanas” adentra esse habitat conhecido, mas ao mesmo tempo inóspito. No olho do furacão a série retrata de forma realista e consistente o ativismo ecológico no país e mostra como a política, a mídia e a própria sociedade civil se colidem numa zona conflitante de expectativas e interesses. A ONG (Organização Não-Governamental) que dá título a obra aproxima o cotidiano burocrático e hostil da instituição do cidadão comum ao mostrar o jogo sujo que burla as leis da pompa elitista da barganha política até às mãos ensopadas de sangue de quem manda e de quem executa.
A produção original da Globoplay é criada por Estela Renner e Marcos Nisti. A quatro mãos e com os dois pés na causa ecológica, eles exploram com maestria uma pauta social vista como enfadonha e radical ao desenvolvimento econômico, por uma alvenaria narrativa envolvente que supre a carência teórica acerca do assunto num equilíbrio entre o didatismo e a maturidade dramatúrgica. O cuidado na construção da trama ao longo dos seus 10 (dez) episódios, dá ao arco dramático tônus suficiente para as histórias fluírem com coerência e sem atropelos.
A trama-mãe se conecta em conflitos menores, mas não menos potentes. Juntas, as protagonistas femininas lutam por seus ideais, no mesmo compasso em que tentam organizar a vida pessoal diante os conflitos do papel de esposa, de mãe e de mulher. Donas de personalidades fortes elas se enfrentam e se abraçam na mesma intensidade, com o mesmo ímpeto. As vivências de cada uma e as vozes que seus lugares de fala ecoam criam um vínculo identitário com o público que se reconhece na luta, na história.
NATI
VERÔNICA
LUÍSA
CLARA
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DÉBORA
TAÍS
LEANDRA
THAINÁ
As quatro personagens reafirmam a versatilidade das quatro atrizes. As oito mulheres preenchem a tela e a força feminina conduz do enredo. A entrega das quatro ativistas reafirma o poder que as mulheres possuem de dizer não, de não se permitirem serem subjugadas, de não se intimidarem com a palavra ou com o olhar de um homem.
O quarteto “Aruanas” pulsa na pluralidade de suas excelentes atrizes. Além de fenótipos distintos, a diversidade que cada uma delas traz consigo no discurso e na ação se potencializa nos conflitos que as acompanham no enfrentamento cotidiano. Numa quebra involuntária da quarta parede a Luísa me fez ver a mãe Leandra Leal e a Verônica me fez enxergar a Taís Araújo engajada nas demandas do movimento negro. Essa simbiose entre a realidade-ficcional e a realidade-raiz na qual vivemos dá a obra um caráter ainda mais contemporâneo e urgente.
A presença de 04 (quatro) atrizes conhecidas das novelas, em papéis atípicos aos quais elas estão habituadas a interpretar, é um acerto de escalação. O elenco, como um todo, é um dos méritos da série e alterna a experiência de nomes consagrados como: Luiz Carlos Vasconcelos (excelente na humanização do algoz Miguel), Camila Pitanga (sedutora e intensa na pele da inescrupulosa Olga), Bruno Padilha (preciso na personificação da ética seletiva do jornalismo televisivo) e Cláudio Jaborandy (ótimo na pele do delegado corrupto), com o frescor juvenil de atores talentosos e ainda pouco conhecidos do grande público, como: Vitor Thiré, Ravel Andrade, Gustavo Vaz, Rafael Primot, e a própria Thainá Duarte (a mais inexperiente entre as protagonistas).
O deslocamento da narrativa para a região norte do país é um respiro necessário ao exaurido eixo RIO-SP. Ambientar a série na fictícia Cari nos aproxima da vida de um povo que as vezes esquecemos que existe. O apuro estético da direção nas tomadas externas da Amazônia é de encher os olhos e engrandece os episódios com a verdade estética que nenhuma cidade cenográfica alcança. A crueza de cada elemento de cena, a beleza peculiar de cada cartão postal, a naturalidade de cada nativo que figura entre uma sequência e outra, nos transporta para aquela realidade, pelo caminho de um reconhecimento identitário genuíno.
Os maiores êxitos da indústria audiovisual brasileira ocorrem quando roteiristas, diretores, produtores e players mergulham para dentro, quando as riquezas ou as mazelas do nosso país assumem o protagonismo e são retratadas por um olhar real, honesto, nosso! Ao deixarmos de lado a obsessão de emular um modus operandi em forma e conteúdo que é sucesso lá fora abraçamos as histórias, os personagens e identidade de representação. “Aruanas” se junta a outras séries nacionais de qualidade e de sucesso por retratarem o Brasil para o Brasil, como: “Sob Pressão” e “Justiça” (da própria Globo), “Conselho Tutelar” e “A Lei e o Crime” (RecordTV), “Samantha!” e “Coisa Mais Linda” (Netflix), ainda que com ressalvas que ficarão para um próximo texto.
“Aruanas” rompe a fronteira da representatividade por dialogar com o público em ressonância direta ao atual momento do país, e por carregar no seu bojo de relevância temas espinhosos como a demarcação de terras indígenas, o papel do poder público na fiscalização ambiental, trabalho escravo, exploração sexual infantil, e tantos outros que são invisibilizados no verniz da hipocrisia. Mais que um grito de alerta, a série é mais que um convite contundente à reflexão, é um condutor reativo pulsante disposto a nos tirar da inércia da ignorância e da passividade.
Felipe Ferreira
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