Coletivo Indra

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“Bom mesmo é ser criança!”

“Bom mesmo é ser criança!”

 Eu sou uma pessoa que quando vejo uma criança correndo, brincando ou dormindo, penso isso...

Vem logo na minha mente que ser criança é sinônimo de inocência, alegria e despreocupações. E eu quero enfatizar para vocês que pensei isso inclusive hoje (para que vocês saibam que é uma sensação que perdura) que foi o dia que conheci o filho de 18 meses de uma amiga... Quando ele não estava sorrindo estava mamando no aconchego do colo de sua mãe.

Alguns minutos depois, apareceu uma outra criança, deveria ter uns 7 anos, vendendo brigadeiro. Com uma fala calma e educada de que a venda dos brigadeiros era para pagar os seus estudos.

 “Bom mesmo é ser criança?”

 De qual infância estamos nos referindo?

De fato, quando eu penso isso (o que acontece com frequência mesmo eu sabendo das diferenças entre as nossas crianças), eu lembro da minha infância como uma criança, que agora, mais do que nunca, sei que fazia parte de uma classe privilegiada.

Essa sim é a criança que não se preocupa. Mas essa situação não é a mesma para tantas outras crianças.

O objetivo desta coluna não é, e nem será, pontuar novamente sobre os dados de desigualdade social/ambiental que assolam a nossa sociedade, mas trazer um pouco a pauta de que nós, os privilegiados, precisamos refletir sobre esta condição.

Este ano, resolvi utilizar com mais frequência a assistência em saúde ofertada pelo SUS. Mesmo sabendo que a saúde é um direito de todos e dever do estado, sempre utilizei o plano de saúde, sem nem considerar o SUS como uma possibilidade real.

Deixo o relato de que as minhas experiências no SUS foram ótimas. Fui bem acolhida, fiz o cadastramento individual, a primeira consulta com a enfermeira de maneira rápida, realizei hemograma e exame coproparasitológico, e marquei a consulta com o médico.

Durante a consulta, ele afirmou a necessidade de realizar o exame preventivo, mas me alertou que o laudo demoraria para sair pelo SUS. Da mesma forma passou uma ultrassonografia transvaginal, que também demoraria para ser realizada.

O que eu fiz? Marquei ambos os exames pelo plano particular.

Nesse momento, o problema dos atrasos deixou de ser “meu” e passou a ser somente daqueles que dependem exclusivamente do SUS. Nesse momento as diferenças entre as classes são escancaradas, mas mesmo assim eu demorei dias para perceber e refletir. O meu adormecimento perante essa situação não ajuda em nada o fortalecimento do SUS. Não me ajuda. E não ajuda a quem realmente precisa.

 Mudando de contexto, mas como o mesmo pano de fundo...

Recentemente, eu estava vendo a discussão sobre o fato de a Anitta ser a representante do Brasil mundo afora. A musica Envolver” liderou o ranking mundial do Spotify.

Primeira vez que uma brasileira atingiu esse lugar e isso, claro, iniciou discussões sobre o tipo de representatividade que o Brasil deveria ou não ter. Deixo claro que o ponto aqui não é falar sobre a Anitta, mas trazer a reflexão sobre a nossa responsabilidade social perante as classes.

Recebi um vídeo do Jornal Estado de Minas que falava sobre a hipersexualização das cantoras pop.

Ele faz um apanhado histórico que perpassa pelas divas pop antigas, como a Madonna, até chegar nas mais atuais, que envolvem a Anitta, Luisa Sonza e outras brasileiras.

 A reportagem abrange três pontos centrais:

1.     A hipersexualização representando a autonomia da mulher, que aparentemente pode fazer o que ela quiser, onde quiser;

2.     A hipersexualização representando o feminismo, como se o feminismo se resumisse ao único campo da sexualidade;

3.     A manipulação histórica destas mulheres hipersexualizadas por homens (como o dono da revista Playboy) que financiam e mantem esta ideia de autonomia e feminismo associadas à sexualidade.

 Sempre é apontado a importância da representatividade para o povo, incluindo principalmente as nossas crianças e adolescentes. A falsa ideia de que a mulher hipersexualizada é uma mulher empoderada, pode deixar escapar a diferença das classes.

A Anitta e a Madonna podem ser hipersexualizadas, porque elas fazem parte de uma parcela da população mundial “protegida”. O que vem na minha cabeça quando escrevo isso, é que elas possivelmente não sofrerão nenhum tipo de agressão física/abuso* devido a escolha da hipersexualização.

Entretanto, quando pensamos na maior parcela da população: pobre, negra, desassistida, a realidade não é a mesma. E quando passamos a ideia de que podemos andar seminuas ou ter inúmeros parceiros, neste momento da involução de parte da nossa sociedade e aumento da desigualdade socioeconômica, tenho muito receio do sofrimento que pode acompanhar a maioria das nossas crianças/adolescentes.

Importante também entender, na diferença de classes, o acesso à informação. A ideia da hipersexualização e empoderamento vem sem informação sobre violências, infecções sexualmente transmissíveis ou gravidez na adolescência.

Aqui estou somente apontando o fato para a reflexão. Entendo perfeitamente que precisamos nos empoderar/fortalecer, entretanto deixo a reflexão se perante tantas lutas necessárias deveríamos canalizar os esforços para a sexualização.

Acho que temos o suficiente para remoer esta semana sobre quais situações já passamos e não tivemos, de forma consciente ou inconscientemente, a percepção das diferenças entre as classes.

 Abraço,

Rafaella Albuquerque

*Madonna, logo que chegou à NY, nos anos 80, antes do sucesso, foi abusada e estuprada. Em entrevista ela diz que esse difícil início na carreira incluindo estas agressões, devastaram-na.

 

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