Coletivo Indra

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Brancos fazendo branquice, ou o incrível caso da bunda senegalesa

Arquivo pessoal

Pensa na seguinte situação: vc está no metrô com dois amigos negros como você, conversando, quando de repente um senhora loira, de aproximadamente 70 anos, dá umas batidinhas no seu braço. Num primeiro momento você acredita que a pessoa está pedindo licença para descer do vagão. Você não entende de imediato. A senhora começa a balbuciar alguma coisa que você não consegue ouvir bem. Até que ela tenta falar mais alto e a situação se revela: “ Você é do Senegal?!” De início você não entende o propósito da pergunta.

- “Como?” “Você é do Senegal?

- É que as pessoas do Senegal são as pessoas com a bunda mais perfeita do mundo!”

Imaginem a minha cara de estupefata!? Meus amigos, uma pegou o celular, o outro começou a rir discretamente e eu fiquei olhando para aquela senhora a minha frente num misto de perplexidade e ironia. Ela continuou falando: “Porque eu sou senegalesa. Sou uma mistura de senegaleses com italianos. Eu tenho dois filhos “assim também” (disse se referindo a minha cor) que tem uma bunda linda. Eles são altos assim. É por isso que eu sou assim toda manchadinha. E que também tenho essa bunda”. 

Aquela senhora loira, nórdica diante de mim (sem bunda nenhuma), por conta de uma dita ascendência  africana se achou no direito de interromper minha conversa com meus amigos pra fazer tal comentário que no mínimo poderia chamar de ridículo para tentar ser simpática. Eu não pude acreditar!!! 

Respondi que não era senegalesa com um sorriso debochado na cara e as “armas" a postos para um contundente discurso. No que ela insistiu, tentando consertar a situação que ela já tinha percebido esdrúxula:

- “Você já pesquisou de onde você vem? Tem meios pra descobrir isso!” 

De súbito me veio uma grande indignação. Segurei mais firme minhas “armas" e respondi: 

- “Você tem como descobrir, eu não!” 

Ela insistiu dizendo que tem como buscar sua ascendência por um programa de sei lá o quê. Olhei para aquela senhora enquanto ela tentava, num enorme constrangimento e esforço, fazer aquela conversa sem nexo nem propósito ter algum sentido, e pensei: Temos que escolher muito bem as batalhas que devemos travar! Encarei com um sorriso debochado aquele rosto rosa, manchado, cheio de cicatrizes que lembravam algumas cirurgias plásticas, um cabelo estranho, um corpo coberto por uma vestimenta que apesar de simples no estilo, revelava sua ascendência burguesa alta pela grife. Vi uma senhora de 70 anos tentando desesperadamente consertar com o que ela considerou simpatia e elogio seu imenso racismo. E senti pena... mas não essa pena condescendente, mas uma pena de quem olha essa pequenez de cima. Conclui que seria uma batalha que não valia a pena travar... que fique bem claro: não valia a pena naquele momento! 

No entanto fiquei pensando no quanto o racismo é tão empoderador quanto o conhecimento e a auto estima. Ele deu a certeza áquela senhora de que ela poderia interromper uma conversa entre pessoas que ela não conhecia, dentro de um vagão de metrô, para demonstrar sua surpresa em ver uma bunda tão grande e perfeita de uma mulher negra? 

O RACISMO ESTRUTURAL. 

Esse que diz a ela desde sempre que tudo lhe é licito, logo, tudo lhe convêm! Mas então o que nos blinda, a nós negros, desse comportamento? Nada! A nós só resta a luta. E o que podemos fazer é entender qual a melhor estratégia de luta para cada situação.

No meu caso, nessa situação, foi deixa-la com meu silêncio debochado travestido num sorriso e com monossilabicas respostas e um olhar inquisidor que a deixaram desconfortável o suficiente a ponto de perceber que a cada frase sua a falta de noção se tornava mais evidente. Não lhe mostrei minhas “armas" mais potentes para que o jogo não se invertesse – como muitas vezes acontece – e de vítima eu passasse a agressora de velhinha “gentil" que só queria me elogiar. 

Fiquei pensando no que os amigos militantes mais novos não me diriam: “porque não colocou essa velha racista no seu lugar?” “eu não deixaria barato". E a eles eu poderia dar um milhão de motivos para não ter derramado sobre a senhora um monte de verdades (sem aspas mesmo). Mas eu digo apenas que não disse nada porque... não! Não tive vontade ou disposição de travar tal batalha diante das tantas que travamos diariamente. Estou num ponto da caminhada que acredito poder me dar esse direito de escolha. Lembrei da coluna da semana passada quando expliquei a diferença de racismo estrutural x bondade/maldade. 

Esse é claramente um exemplo de pessoa aparentemente boa e extremamente racista. E mais uma vez me dei conta do quanto nossa luta é diária e constante. Me dei conta de que nem sempre o discurso vem em palavras mas, as vezes, ele é mais eficaz em atitudes. Que ser mulher preta é muuito difícil porque a agressão física vem também da mulher branca que viola nosso corpo com sua inveja e despeito. É preciso estar atento e forte sempre. Algumas estações depois ela desceu se despedindo de mim e dizendo que eu era muito bonita! Eu e meus amigos não pudemos evitar de olhar para sua bunda que ela disse ser “perfeita" como a minha. E concluímos que se a dela era perfeita, deve ter deixado em casa pra ninguém importunar. Brancos fazendo branquice!

Tati Tiburcio

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