Coletivo Indra

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Bullying

"Diálogos”por Alice Xavier (@paisdealice_)

ENTRE O ANTÍDOTO E O VENENO

“Esse meu ódio é…

O veneno que eu tomo 

querendo que o outro morra…”

Dia desses essa canção da banda Luxúria tocava no meu Spotify. O rancor atroz do refrão me fez voltar a sala de aula, época agridoce da vida onde eu cantarolava mentalmente seus versos. Era a forma mais normal e sensata que eu tinha de controlar meu ímpeto odioso, vingativo. Escutá-la hoje, mais de 10 anos depois, é uma experiência nostálgica que me permite revisitar as memórias - entre dores e traumas - na companhia do afeto e da gratidão.

Uma das grandes encruzilhadas da vida leva o nome de adolescência. É na convivência escolar proporcionada por ela que somos apresentados a diversidade do mundo, esbarramos nas intempéries da vida e entendemos - ao menos tentamos - quem realmente somos. Esse universo de possibilidades ora hostil, ora acolhedor, nos conduz por um caminho de autoconhecimento que ajuda a formar a identidade num jogo de espelhos entre a nossa essência e o que vemos no outro como referencial de popularidade e aceitação. 

Eu não tive muitos amigos na escola. Nunca fui um cara muito popular, apesar de ser simpático com todo mundo. Não sei se era o fato de eu ter sido gordo a vida toda - isso influencia muito - ou de eu ser meio carente de atenção, talvez…

(Vinicius Freitas)

Passei meu colegial inteiro sendo compreensivo. Aceitava com parcimônia todos os apelidos que recebia. Ficava isolado numa bolha de passividade que me impôs a obrigação de levar na esportiva e aceitar. Uma tentativa ilusória de mostrar para os outros que aquelas palavras não afetavam minha auto-estima, ainda que por dentro, elas deixassem tudo revirado.

Ser diariamente chamado de viado, viadinho, bicha, afeminado, provocou um constrangimento que não deveria ser meu. Além de abraçar a culpa das agressões pelas quais eu era a vítima, meus demônios duelavam tentando encontrar uma explicação racional sobre o que havia de errado em mim. Afinal, se eu não fosse daquele jeito, se eu não fosse diferente dos outros garotos normais do colégio, se eu não fosse o que eu era (e o que continuo sendo) as brincadeiras não existiriam. 

O tempo passa, a caravana passa com ele e a gente se vê revisitando os compartimentos mais sombrios da nossa morada. Dessa vez sem mágoa, sem nutrir o sentimento nocivo que mentalizamos pro outro e que no fundo só envenena a nós mesmos. A maturidade nos dá a sabedoria para entender o caminho do rio, sem a cobrança de termos nos ferido em algumas pedras. 

Eu lembro de cada um. Das vozes cortantes, dos olhares sádicos, das gargalhadas jocosas. Agradeço o bem involuntário que me fizeram. O mal plantou uma semente que germinou no orgulho de ser aquilo que sou independente da falta de empatia ou do julgamento alheio. 

Mas eu cresci numa época em que ser nerd, era ser idiota, fui humilhado por garotos por não ser um bom jogador de futebol, por gostar de coisas idiotas e, principalmente, fui muito humilhado por meninas tbm... criei até um bloqueio com mulheres por anos. Estudei, me formei, fui pra faculdade e aprendi que o que vivi lá ficaria por lá, a gente não segue. (Gio MP)

O bullying sofrido é o mesmo que pode ser praticado. Levei essa probabilidade ipsis litteris e na mesma proporção em que eu era vítima, eu era agressor. Ainda que como um mecanismo inconsciente de defesa eu usava a mesma violência que me machucava como forma de recuperar a autoconfiança perdida e de endossar um poder afirmativo dependente da desvalorização do outro.       

 OS DEMÔNIOS MORAM DENTRO

“Quadro da Atenção” por Rogério Geo (@rogerio_geo).

Certo dia li um tuíte da @pretanomundo (Liz Santanna), onde ela contava que não iria a um encontrão nostálgico com a galera da escola. A identificação com a negativa foi imediata e me provocou um déjà vu. Eu também recusei ir na “confra” dos velhos “amigos” do colégio. Na faísca despertada por ela pensei sobre o assunto e resolvi abrir a discussão no paraíso do desabafo moderno onde começou esse texto: o Twitter. 

Tudo que teríamos para conversar hoje adultos seria irrelevante para mim. Nem nos grupos de whatsapp eu interajo e tenho até ojeriza.

(Diego Orge)

Montei um quebra-cabeça de comportamentos, traumas e vivências que remontou os escombros da minha trajetória. Ainda que os relatos recebidos abracem a diversidade de gênero, de corpos e de lugares de fala, eles me proporcionaram um entendimento mais inclusivo da juventude e de como esse período pode ser tortuoso e determinante no que seremos ao nos tornarmos adultos.     

Ainda pequenos somos adestrados a entender o que é certo, o que é errado, o que pode e o que é pecado. Crescemos e o adestramento continua na valorização do que é belo, padrão e aceitável. A partir daí convivemos diariamente com o medo do estereótipo. Damos as mãos a sombra da não-aceitação e caminhamos lentamente para o isolamento. Nos camuflamos na sala de aula, abrimos mão do recreio, deixamos de frequentar os lugares na tentativa de não sermos notados e alvejados deliberadamente por quem se ache no direito de fazê-lo. 

Eu mudei de escola muitas vezes também, mas eu não me sentia parte de uma comunidade... fui encontrar essa sensação de pertencimento - mesmo que rasa -  no meio do heavy metal, na adolescência. Eu acho que sempre busquei isso, e nunca encontrei.

(Vinicius Freitas)

Os resquícios dessa violência naturalizada e, na maioria das vezes, ignorada por professores em concordância com a direção pedagógica, ultrapassam a sala de aula, os muros da escola. A sombra do linchamento, da ridicularização, do escárnio, nos acompanha por todos os lugares e afeta nosso comportamento perante o mundo, sobretudo, no reflexo de nós mesmos. 

O cabelo liso a qualquer custo, o autocontrole para não desmunhecar, a magreza necessária para não fazer feio na aula de educação física, a imposição de ter um estilo igual ao de uma maioria representam formas cotidianas de autossabotagem que a prática do bullying semeia. 

Os danos físicos e psicológicos provocados pela cultura dessa violência envernizada no humor ingênuo comum da idade são inquestionáveis e subjetivos a cada indivíduo. Para alguns a agressão é transformada num trampolim de auto estima e auto aceitação, enquanto para uma grande maioria, as agressões abrem caminhos mais tortuosos que podem culminar em finais trágicos. O baixo rendimento escolar, crises de ansiedade, agressividade, são os exemplos reativos mais corriqueiros ao bullying, e que precisam ser percebidos pelas pessoas mais próximas.      

Durante o Ensino Médio eu tive que me reinventar para não sofrer bullying. Criei uma personalidade que me salvou dos ataques homofóbicos, mas que me fez muito feliz também.

(Daniel Silveira)

Agora consigo olhar para trás e assistir essa experiência sem mágoas. A revolta represada que um dia senti foi ocupada pela indiferença que me faz seguir com a alma leve e a postura consciente para ser o que sou sem abrir concessões às vozes da homofobia e da intolerância. Tenho o direito de não falar com algum deles num reencontro casual por aí, como também não sou obrigado a compartilhar o prazer de tomar uma cerveja gelada na companhia de quem só fez bem causando o mal. Faço minhas as palavras do Daniel Silveira:

“às vezes é preciso deixar as pessoas irem. 

Tem gente que não precisa estar com você até o fim da vida”. 

E nesses casos a gente agradece porque não é perda, é livramento!

Felipe Ferreira

Instagram @ostrafelipe

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Convido vocês a lerem na íntegra o texto do Daniel Silveira sobre bullying. 

Link: https://medium.com/@dansilcruz