"Cancela item"!!!
—"Cancela ítem"!!!
- Frase que ouvi muitas vezes na minha infância e adolescência, e confesso, na fase adulta da minha vida também. Certamente você, cara leitora, deve ter ouvido em algum momento igualmente, ao menos se tu não fores da vida normal que faz supermercado, atrasa contas, é assalariada, aí vais ter de fazer um esforço maior para compreender essa analogia.
Essa máxima era (é) sempre ouvida, quando tu chegas no caixa do supermercado, e percebes que faltou grana, ou cartão não passa. Seguido disso então, a atendente tem de cancelar aquele produto, já que você não vai levá-lo. É sempre um pouco constrangedor. Ela geralmente faz isso em voz alta, e isso acaba chamando a atenção de outras pessoas. Situação essa, comum na vida de nós pobres mortais, mas sempre com sensação de vergonha alheia (escrevo em risos, pois passei por isso semana passada)
O cancelamento nesses novos tempos tem quase a mesma forma: ele chega em volume alto e o estardalhaço, faz com que certas pessoas, situações, lugares ou o que for "necessário “cancelar, seja excluído, banido do nosso campo de visão, ou deixado pelo caminho, no caixa, tal qual produtos que tu não pudeste levar.
É o "linchamento virtual" com outro "modus operandi", mas quase com o mesmo fim: aniquilar
Dizem que a palavra "linchamento" veio de Willian Lynch, um proprietário de escravos no Caribe (Caraíbas) conhecido por manter os seus escravos disciplinados e submissos. Acredita-se que o termo “linchar” (to lynch, lynching: em inglês), se deriva do nome dele. Outros atribuem a Charles Lynch, que praticava o ato por volta de 1782, durante a guerra de independência dos Estados Unidos, ao tratar dos pró-britânicos. A "lei de Lynch” deu origem à palavra linchamento, em 1837, designando o desencadeamento do ódio racial contra os índios, principalmente na Nova Inglaterra, apesar das leis que os protegiam, bem como contra os negros perseguidos pelos "comitês de vigilância" que darão origem ao Ku Klux Klan. No Sul, é a desconfiança da lei e a reivindicação de anarquia que favoreceram seu desenvolvimento.
Enquanto a maioria dos europeus se confrontava com problemas como fugas e revoltas de escravos, Willie Lynch mantinha um controle e ordem absoluta sobre os seus serventes negros.
Esse poder despertou o interesse dos fazendeiros da América do Norte seus escravos na linha. Muitas pessoas passaram a querer entender, o que fazia ele de tão diferente e inovador. A ele atribuíram uma carta que segue abaixo:
"Verifiquei que entre os escravos existem uma série de diferenças. Eu tiro partido destas diferenças, aumentando-as. Eu uso o medo, a desconfiança e a inveja para mantê-los debaixo do meu controle. Eu vos asseguro que a desconfiança é mais forte que a confiança e a inveja mais forte que a concórdia, respeito ou admiração. Deveis usar os escravos mais velhos contra os escravos mais jovens e os mais jovens contra os mais velhos. Deveis usar os escravos mais escuros contra os mais claros e os mais claros contra os mais escuros. Deveis usar as fêmeas contra os machos e os machos contra as fêmeas. Deveis usar os vossos capatazes para semear a desunião entre os negros, mas é necessário que eles confiem e dependam apenas de nós. Meus senhores, estas ferramentas são a vossa chave para o domínio, usem-nas. Nunca percam uma oportunidade. Se fizerdes intensamente uso delas por um ano o escravo permanecerá completamente dominado. O escravo depois de doutrinado desta maneira permanecerá nesta mentalidade passando-a de geração em geração”.
A veracidade de tudo que eu relatei até agora é bem controversa. Mas algo me chamou muita atenção nesses relatos: eles são um retrato fiel daquilo que é constantemente feito para a comunidade negra, e outras "minorias". Desde os primórdios até os dias atuais, o tal "cancela item “promovido pelos programas de tevê, em especial um reality que passa na tevê aberta no momento, revela isso em detalhes.
Numa escala muito maior, coloca todo o trabalho de uma militância e luta, de uma comunidade, de pessoas e situações específicas, em cheque quando digladia uns contra os outros e expõe a faceta cruel da sociedade brasileira, que deseja ser justa e justiceira, desde que com outros e nunca no seu próprio quintal. Mede com a mesma régua a exceção como se fosse o todo, como se um falasse por todos, e comete assim injustiças e desigualdades ainda maiores.
Se a tal carta é verdadeira, não sabemos até o momento, mas se foi realmente escrita, o remetente deve estar em orgulho puro por saber, que seu trabalho de bem perpetua práticas de tal crueldade, separação linchamento e humilhação, seguem até hoje, e ainda se modernizaram.
Já cancelou quantos itens hoje?
VALÉRIA BARCELLOS
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