Coletivo Indra

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Cloroquina e tubaína

Recentemente, o Ministério da Saúde do Brasil liberou o uso de cloroquina para o tratamento da COVID-19, decisão que foi muito questionada por vários especialistas, nacional e internacionalmente. 

Mas quais os passos que precisam ser seguidos para preconizar o uso de um novo medicamento para o tratamento de uma doença?

A comprovação de que um medicamento é útil é definida a partir da avaliação de sua eficácia. Entretanto, só conseguimos confirmar eficácia de um medicamento caso realizemos um estudo de intervenção, do tipo ensaio clínico. Este, dentro dos estudos epidemiológicos analíticos, é aquele que gera uma evidência científica mais forte, e, portanto, são utilizados para a tomada de decisão. 

O entendimento da importância de seguir criteriosamente o desenho metodológico dos estudos de intervenção será o ponto no qual girará a coluna desta semana.

Inicialmente, vamos falar um pouco sobre os conceitos necessários para entendermos a utilização dos ensaios clínicos em termos gerais. O termo eficácia responde a seguinte pergunta: a intervenção pode funcionar em condições ótimas, controladas? Para que possamos ter certeza desta resposta, temos um caminho a percorrer e, tenham certeza, não podemos encurtá-lo; vocês vão entender as razões à medida que leem essa coluna. 

Antes de mais nada, é fundamental que seja avaliada a toxicidade deste medicamento, que reflete diretamente na segurança do seu uso, além da determinação de vias de administração e dose. Após isso é iniciado a avaliação da eficácia do medicamento, entretanto com um menor número de participantes. Em seguida, caso a droga tenha sido razoavelmente eficaz, iniciamos o processo de determinação de eficácia de fato. Robusta. Esta tem o objetivo de avaliar em larga escala o tratamento, e vamos usar como exemplo a cloroquina. Antes da recomendação do uso da cloroquina, é essencial comparar o seu uso com os tratamentos padrões disponíveis para a mesma condição médica, para que consigamos mensurar os ganhos no seu uso.  

Então vamos para as características do estudo!

O estudo deve ser controlado, o que significa que existirá a formação de um grupo controle, semelhante ao grupo de intervenção, e que tem por objetivo a comparação. Se acreditamos que um medicamento funciona, partimos do pressuposto de que, no grupo intervenção (aquele que recebe o medicamento) teremos uma redução de sinais clínicos e ou efeitos adversos quando comparado ao grupo controle (que não recebe o medicamento ou que recebe outro tipo de protocolo terapêutico). Entretanto, teremos a certeza desta diferença ao final do estudo, em que quantificaremos a ocorrência dos desfechos de interesse (sinais clínicos e efeitos adversos) em cada um dos grupos para compará-los.

Outro ponto fundamental é que o estudo seja randomizado, ou seja, que a formação dos grupos seja realizada de maneira aleatória. Este procedimento é fundamental para unificar os grupos e neste sentido torná-los cada vez mais comparáveis, principalmente na distribuição dos fatores que poderiam influenciar diretamente o desfecho avaliado (cura ou óbito). Por exemplo, se eu estou conduzindo o estudo e quero muito comprovar a eficácia do medicamento, eu posso, mesmo que de forma inconsciente, dividir os grupos de maneira parcial. Posso colocar as pessoas que tem o melhor prognóstico no grupo de intervenção e as que tem pior no grupo controle. E, obviamente isso impactaria diretamente nos resultados.  

Além disso, é fundamental que seja realizado o cegamento do estudo, em que as pessoas nos grupos não sabem a qual grupo pertencem. Isso é extremamente relevante porque quando o indivíduo não sabe, não há nenhum tipo de interferência emocional impactando na melhora ou piora do seu quadro clínico. Para deixar mais claro: se eu sei que estou no grupo controle e, dessa forma, não estou tomando o medicamento, posso ter uma piora psicológica. Da mesma forma que, se eu sei que estou no grupo de intervenção, que recebe o medicamento, posso ter uma melhora também emocional, chamada efeito placebo. Para termos certeza de que o efeito da melhora ou piora foi provocado pelo medicamento em si, e não pelo emocional, o ideal é que as pessoas não saibam a que grupo pertencem.

E para finalizar, para que consigamos generalizar os resultados para a população, devemos selecionar uma amostra que seja representativa da população, ou seja, que contenha as características inerentes à população assim como que seja grande o suficiente em termos estatísticos. Falo isso para que fique claro que, para os resultados terem validade, ou seja, para que eles sejam extrapolados, a amostra tem que ser representativa. Não caiamos na falácia de que, se o tratamento com a cloroquina deu certo para fulano ou para ciclano vai dar certo para todo mundo, porque estas duas pessoas não representam a população. 

O cumprimento mínimo desses critérios é fundamental para reduzir os erros, chamados “vieses” e que podem estar relacionados às subjetividades na condução do estudo. Lembrem que queremos sempre um estudo com resultados válidos e precisos, e que tenha sido conduzido da forma mais idônea possível. A partir do momento em que houve a liberação da cloroquina sem seguir nenhum dos critérios citados nos parágrafos acima, perdemos totalmente esta idoneidade. Pular etapas significa ser subjetivo, ser parcial, o que nunca é bom para a tomada de decisão. Temos o exemplo do (ex-ministro) Moro: “não tenho provas, mas tenho convicção.” Ter somente convicção para a tomada de decisão não é justo. Não é certo.

Então, finalizo enfatizando que entre cloroquina e tubaína não há diferença em termos de eficácia. Nenhuma das duas tem evidências suficientes para ser utilizada no tratamento da COVID. 

Um abraço,

Rafaella Albuquerque

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