Coletivo Indra

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COLOQUE PRIMEIRO A SUA MÁSCARA

“Se deus resolvesse me levar agora, talvez fosse a melhor coisa que poderia me acontecer”.

Aquela frase contrastou com o diálogo que tivéramos até ali. Quando entrei no Uber, o motorista se revelou gentil, educado, atencioso e começamos a falar sobre como as cidades grandes tendem a expulsar seus moradores por causa da violência, mas sobretudo, da sensação constante de insegurança.

O papo foi fluindo e me permiti falar sobre a violência como elemento  fundante do país desde a invasão de 1500. Ele se mostrou surpreso e, após me perguntar se sou professor de história, disse que tinha aprendido tudo de outra forma.

Expliquei que os preconceitos que temos são, em grande medida, resultado da ausência de protagonismo indígena e negro nos livros de história escolar. Da chamada educação eurocêntrica.

Quando falei sobre as estratégias de fuga dos indígenas, que conheciam o território muito melhor do que os bárbaros brancos que tentavam escravizá-los, ele disse:

“Minha tataravó era índia. Índia selvagem. Foi pega no laço. Me contaram que ela nunca parava quieta”.

Pudemos então falar sobre como a educação eurocêntrica romantizou o “foi pega no laço”: uma violência absurda sobre o corpo e a vida das mulheres indígenas. E chegamos juntos à conclusão de que ela não era selvagem e, sim, lutava para recuperar a liberdade.

Em seguida, ele me contou que, desde pequeno, foi tratado como bobo pelos amigos, inclusive pelo pai, que dizia que ele não devia fazer tudo para agradar os outros. Que quando ele precisasse ninguém estaria do seu lado. Ao que ele respondia que “amar é uma decisão”.

Que ele havia decidido amar o outro e ajudar quem precisasse, sem esperar algo em troca.

Logo me contou que o que o segurava na cidade grande eram as duas filhas e a falta de dinheiro para buscar um outro lugar para morar, quem sabe na Europa. Voltamos a falar da ilusão sobre o continente europeu, que enriqueceu às custas de genocídios e saques contínuos nos continentes africano, americano e asiático.

E que hoje não consegue mais manter a invejada tranquilidade de andar nas ruas com segurança.

Frisei a importância do conhecimento para não se deixar enganar por informações falsas, mas, sobretudo, da importância do auto conhecimento. E que a decisão de amar deveria começar pela decisão de amar a si mesmo.

Aproveitei a potente metáfora do avião: “Máscaras cairão sobre suas cabeças. Coloque primeiro a sua máscara, antes de ajudar quem necessita de ajuda”. Foi então que ele me disse:

 “Se deus resolvesse me levar agora, talvez fosse a melhor coisa que poderia me acontecer. O senhor sabe, eu nunca amei a minha mulher. E quando consegui me separar encontrei uma paz desconhecida até então.

Hoje estou com uma menina que também não amo, mas me obrigo a dizer eu te amo para ela todo os dias. Acho que assim vou conseguir amá-la um dia”.

Naquele momento a bíblia imponente que descansava sobre o console fez todo o sentido. E, antes de descer, ainda consegui dizer, com muito carinho, que mesmo que a família, a escola, a religião, os meios de comunicação insistam que você deve ser de um jeito, só você sabe como realmente é.

E lembre-se da sua tataravó indígena. Mesmo tendo sido pega no laço, nuca descansou na luta pela liberdade. Os indígenas nos ensinaram que devemos viver de acordo com a natureza. Busque saber mais sobre sua tataravó e pare de fugir da sua própria natureza.

Visivelmente emocionado, ele brincou se deveria pagar a “consulta” e me deu um cartão, caso eu precisasse de alguma coisa. Respondi que a vida se encarregaria de cruzar novamente nossos caminhos e que, então, eu esperava reencontrá-lo em paz.

Sem medo de amar a si mesmo e a quem quer que seja, independente do que a “sociedade” prega que é certo.

 Renato Farias

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