Coletivo Indra

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"Criança não trabalha"

Imagem Internet

Uma das canções da dupla musical “Palavra Cantada”, formada em 1994 por Tatit e Sandra Peres, batiza este artigo. O refrão diz:

“criança não trabalha, criança dá trabalho, criança não trabalha”.

Primeiramente, vamos falar de infância. As crianças existem desde que o mundo é mundo. Mas, a “infância” é uma categoria razoavelmente recente. De acordo com algumas pesquisas do campo dos estudos sociais da infância, a dita cuja surge num processo histórico e social entre os séculos XIII e XVIII. Com o advento da categoria de infância surgiram áreas de investigação mais específicas. O historiador francês Phillipe Ariès (1914-1984) analisa que as crianças deixavam de ser “adultos em miniatura” e a infância passou a ser uma fase particular da vida que merece cuidados específicos. Com efeito, começam a se constituir saberes determinados como a psicologia infantil, a pediatria, a pedagogia, dentre outros.

No século XX algumas pesquisas começaram a analisar como a criança se desenvolve. Sem dúvida, o desenvolvimento infantil foi alvo de trabalhos de pesquisadores que se tornaram referências importantes para o campo da Pedagogia. O médico francês Henri Wallon (1879-1962), o psicólogo russo Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934), o biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980). Os três analisaram a infância e identificaram fases de desenvolvimento sensório-motor, cognitivo e de aquisição da linguagem. Os seus trabalhos foram decisivos para desenvolvimento de teses que afirmam que a interação social é um aspecto importante para compreensão do aprendizado. 

No mesmo século XX, a infância assumiu o caráter de uma categoria protetiva. Durante 10 anos, de 1979 a 1989, a Unicef preparou um documento referência para as crianças de todo o mundo, com limitações naturais; mas, um grande avanço na época. A Convenção dos Direitos da Criança (CDC), um documento que ajuda a combater uma ansiedade tipicamente adulta que insiste em perguntar para a criança: “o que você quer ser quando crescer?”.  Vários estudos do campo informam que questionar uma criança a respeito do que ela pretender “ser” quando crescer traz inúmeros equívocos.

Primeiro, não podemos transportar a natureza de alguém numa projeção futurista. Afinal, as crianças já são alguma coisa. Elas não serão algo somente quando se tornarem adultas. Segundo, vincular a identidade de uma pessoa apenas ao seu pertencimento profissional é muito problemático. A profissão de uma pessoa é um aspecto da sua vida. Um ser humano não pode ser reduzido somente ao trabalho que exerce, suas atividades laborativas não são mais importantes do que seus relacionamentos afetivos (ser-mãe, ser-pai, ser-filha, ser-filho, ser-cônjuge etc.), seu pertencimento espiritual-religioso, etc.

Perguntar o que uma criança quer ser quando crescer é uma pergunta imprópria e bastante inadequada. Por outro lado, a gravidade de vincular uma criança a alguma atividade profissional, isto é, aceitar, ou ainda, recomendar o trabalho infantil é muito mais grave. A infância surgiu como uma categoria que reconhece que o estágio de desenvolvimento da criança, assim como a sua vulnerabilidade, implica no dever adulto e direito infantil a se relacionarem dentro de parâmetros da proteção e do cuidado. É imperativo que pessoas adultas cuidem e protejam as crianças. O direito à infância é inalienável de todas as crianças.

De onde concluímos, o trabalho infantil está completamente em desacordo com as leis das nações filiadas à ONU e do Brasil. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) explica bem as situações de exceção em que, sob critérios específicos e rígidos, crianças e adolescentes podem exercer algumas atividades. Um critério fundamental é que a atividade não vá de encontro ao bem-estar da criança; ao encontro do bem-estar infantil estão os direitos à educação, à saúde, ao lazer, à proteção contra qualquer tipo de exploração. 

Por outro lado, os povos e comunidades tradicionais – aqui definidos como populações que se organizam a partir dos movimentos cíclicos da natureza, trabalho tem um sentido integrado à vida coletiva, a relação com o território é um vínculo afetivo que não passa pelas leis de mercado, dentre outras – como, por exemplo: Povos Indígenas, Quilombolas, Seringueiros, Castanheiros, Quebradeiras de coco-de-babaçu, Comunidades de Fundo de Pasto, Catadoras de mangaba, Faxinalenses, Pescadores Artesanais, Marisqueiras, Ribeirinhos, Varjeiros, Caiçaras, Povos de terreiro, Praieiros,  Sertanejos, Jangadeiros, Ciganos, Pomeranos, Açorianos, Campeiros, Varzanteiros, Pantaneiros, Geraizeiros, Veredeiros, Caatingueiros, Retireiros do Araguaia, entre outros.

Pois bem, no contexto dos povos tradicionais, as crianças fazem atividades com outras crianças e as pessoas adultas. A situação é bem diferente. Porque o caráter não é de exploração. Com isso, não estamos a defender o trabalho infantil. Pelo contrário. Porém, estamos tratando um assunto complexo com a envergadura que ele merece e trazendo à luz outro aspecto. De maneira geral, no contexto dos povos tradicionais, as crianças são mais ativas. Porque elas participam da vida coletiva de modo mais integrado. Daí, os povos tradicionais têm algo a ensinar:

AS CRIANÇAS PODEM SER MAIS ATIVAS SEM PASSAR PELA EXPLORAÇÃO.

Imagem que viralizou na internet com o projeto Favela Grafia

Porque é preciso saber a enorme diferença entre trabalho e participar da vida comunitária de modo colaborativo dentro de um contexto tradicional. É equívoco achar que podemos comparar as duas coisas. Nas sociedades urbanas e industrializadas não existe similar. Porque no contexto dos povos tradicionais, as crianças aprendem com as gerações mais velhas a dinâmica da comunidade. 

Num outro aspecto, a escola é uma instância muito importante para o desenvolvimento das gerações mais novas. Porém, nem sempre a sua estrutura consegue cumprir sua função. Como dizia o filósofo francês Michel Foucault, a Escola tem a mesma estrutura da prisão. As pesquisas da educadora e professa da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Léa Tiriba, informa que crianças em algumas creches e escolas de educação infantil de horário integral têm menos horas semanais de banho de sol do que presidiários. A partir dessa conjectura, não existem soluções mágicas. Não basta livrarmos as crianças do trabalho e “prendê-las” na escola. Nós precisamos de uma Escola em que a infância seja preservada.

UMA ESCOLA DEMOCRÁTICA QUE GARANTA A RELAÇÃO COM A NATUREZA E A PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS DE DECISÕES COTIDIANAS COMO, A DURAÇÃO DO RECREIO. 

Portanto, reafirmo o título da música da dupla musical, “Criança não trabalha”! Em paralelo, considero que a educação das crianças deve ser promovida em instituições democráticas que prezem por algo aparentemente simples, preservar a infância das crianças. Ou seja, permitir que elas cresçam dentro dos seus tempos, aprendam com seus ritmos e aprendam habilidades e competências de conviver com as pessoas de sua geração e com as outras num diálogo democrático em que respeito, empatia, solidariedade e ética colaborativa não sejam pieguices. O papel de uma sociedade que protege as crianças do trabalho, da exploração e as encaminha para a escola não é outro, senão, escutar as crianças e aprender com elas que elas não são o futuro. Mas, o presente. Um presente especial que pode oxigenar o mundo aqui e agora.

O MOMENTO É DE APRENDER COM AS CRIANÇAS, PRINCIPALMENTE A TRABALHAR MENOS E BRINCAR MAIS.

Renato Noguera

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