Essa semana fomos assolados por exemplos que vieram a público sobre aquela dita “mania que a gente tem” de inventar que existe racismo nesse país.

Entre esses exemplos, o caso do Matheus, da bicicleta elétrica no Leblon.

A “invenção” bateu à porta com força e enorme ironia: a bicicleta em questão era mesmo do Matheus e quem roubou a bicicleta do casal que o acusou foi um rapaz nórdico, morador da zona sul do Rio de Janeiro, acima de qualquer suspeita nessa sociedade racista como a que vivemos.

Na minha conta no instagram, recebi um ataque racista de um ser que me xingava de macaca se dando esse direito por considerar que eu chamei um genocida de genocida (coisa que nem tinha feito apesar de considerar um genocida o genocida)

O que esses dois exemplos – entre milhares que acontecem cotidianamente nesse país – tem em comum?

A certeza das pessoas brancas, de seu lugar de superioridade dentro de nossa escala social.

É essa certeza, intrínseca nessas pessoas, que faz com que elas tenham a coragem de invadir o espaço físico e/ou pessoal do sujeito negro, como se não tivéssemos direitos, vontade ou liberdade.

Rapidamente essas pessoas se comportam como se fossemos o objeto, “a peça” de sua propriedade que eles podem inquerir, ofender, agredir, indiscriminadamente a qualquer tempo e sem o menor pudor.

É um comportamento histórico de perversidade.

O casal branco do Leblon comete várias ações que demonstram isso. Entre elas está a de ter certeza que a bicicleta portada por Matheus seria deles, pois, a figura do Matheus não está associada a imagem de uma pessoa com posses o suficiente para ter um item como aquele.

E diante dessa certeza partem para cima do cadeado da bike, sem pedir permissão, e tentam abrir sem sucesso. Ou seja, invadem o espaço físico e moral do menino sem a menor cerimônia já que carregam um direito histórico de opressão sobre nossos corpos.

Só depois de perceber que sua chave não abria o cadeado codificado, é que abandonam o modo “sinhô” e partem para uma falsa postura cortês pedindo desculpas e imediatamente se defendendo dizendo não o ter acusado verbalmente.

Nesse ato demonstram, sim, ter consciência do poder exercido, mas agora com medo visto que o fato não corresponde ao imaginário construído e consolidado.

No meu caso, após a repostagem de um vídeo feito por um humorista criticando com genialidade a postura do atual governo, o ser – que não podemos ainda identificar quem seja, mas que, com 99% de chance não é negro – se viu no direito de cometer o crime de injuria racial me chamando de macaca em minha própria rede.

Ou seja, invadiu o meu espaço pessoal com seu ódio disfarçado de opinião.

A postura dessas figuras nos exemplos citados mostra sua total consciência e certeza de sua supremacia criada e alimentada por séculos.

Quando ousamos ocupar espaços dentro de um contexto ou com uma postura não esperada por eles em sua fantasia opressora, somos prontamente acusados ou ofendidos (quando não, mortos) sem a menor cerimônia.

Fui instruída a entrar com uma ação contra esse crime sofrido na minha rede social. Denunciei a situação na rede, denunciei em um site específico para essa questão, e sim, vou denunciar na delegacia de crimes pela internet.

Mas ao mesmo tempo me pego questionando alguns pontos muito importantes em relação ás leis que contemplam essa questão.

Me pergunto sobre a enorme hipocrisia e comodismo por parte daqueles que devem analisar a aplicação da lei nos fatos ocorridos.

É comum, como no caso do Matheus o crime não ser enquadrado como de injuria racial previsto no artigo 140, parágrafo terceiro do código penal que define que o autor atinge não uma coletividade, como no crime de racismo, mas um indivíduo por conta de sua cor, raça, etnia, religião, condições de pessoas idosas e portadores de deficiência. Porque, para esse crime, o autor precisa expressar, como foi no meu caso, verbalmente seu preconceito.

Isso faz com que na maioria das vezes, o que é nitidamente fruto de racismo seja enquadrado como calunia. Até quando vamos continuar fingindo que não está acontecendo o que está acontecendo diante de nossos olhos?

No caso do Matheus, a defesa do casal alega que não houve crime de injuria racial, apenas um mal-entendido.

Mas esse “mal-entendido” se dá pelo fato do menino ser negro portando uma bike muito cara, em um bairro de elite, o que não corresponde ao imaginário social sobre sua pessoa.

Até quando vamos continuar ignorando essa lógica apoiados na desculpa de que palavras não foram proferidas? E precisava? Certas ações valem muito mais do que palavras! E no Brasil, onde o racismo é estrutural e seu questionamento constantemente calado com um  equivocado argumento pautado pela ideia de democracia racial, isso se torna ainda mais danoso.

É preciso pôr fim a esta hipocrisia! É preciso que a justiça pare de lavar as mão aos moldes de Pilatos. Deixe de se esconder atrás do verbo redigido e tenha coragem de achar os caminhos para fazer a interpretação devida dos acontecimentos levando em consideração todo o contexto histórico em que fomos construídos. Porque quando somos nós na frente da acusação a postura é muito diferente.

O mínimo que esse casal deveria fazer era vir a público assumir que foram racistas mesmo se justificando no fato que de não agiram de forma consciente, mas estrutural. Era o mínimo!! Esse mesmo grupo ao qual esses jovens brancos fazem parte são aqueles que adoram se dizer desconstruídos, mas que na primeira oportunidade mostram suas garras e sua face.

Assim como os fascistas que se escondem atrás de um perfil fake para jorrar seu ódio mas que clamam a Deus em nome da pátria e da família dita tradicional.

Todos se escondem atrás do anonimato, da dissimulação ou da omissão.

A diferença é que nós negros, paramos de ranger os dentes e assim como Matheus no final do seu vídeo, estamos pondo os opressores para correr com o rabo entre as pernas garantidos na grandeza e na certeza daqueles que sabem o seu lugar... O topo!

Quando o que está em jogo é a minha vida, meu brado será forte e minha mão será pesada pois meu corpo não cai mais.

Tatiana Tibúrcio

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