Coletivo Indra

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De que lado do muro?

Hoje eu volto a escrever neste espaço, agora como colunista quinzenal, entrando em mais um desafio dessa vida cheia de desafios!

Para esse primeiro texto eu havia planejado e preparado muita coisa! Estava com vontade de começar lá pra cima, celebrando conquistas e lutas... acontece que, para que possamos seguir em frente, eu entendo ser necessário dar alguns passos para trás e lidar com um grande gatilho que se escancarou e doeu em muita gente!

Eu não quero, nesse espaço, falar mais do mesmo ou falar do que todo mundo já está falando...(nada de falar sobre BBB)... Acontece que, enquanto mulher e bissexual, não posso me calar...  porque aquele gatilho e aquela dor também doeram em mim!

O que é ser “bi” na fila do pão? 

Apesar de ser “visibilizada” no mês de setembro pela comunidade LGBT+, a verdade é que a existência da letra B nesta sigla pouco significa para grande parte do próprio movimento, sendo ainda uma incógnita para quem está de fora.

Na verdade, somos invisiBIlizades por uma vida inteira!

Sentir atração física, afetiva e/ou sexual por pessoas de mais de um gênero é um grande tabu em uma sociedade binariamente definida e assim conduzida. A comunidade LGBT+ tende a encarar como uma transição entre ficar ou sair do armário, enquanto o pessoal de fora sequer considera como uma legítima forma de experienciar a sexualidade.

- Você está confusa; 

- Você ainda não se entendeu; 

- Você pega todo mundo; 

- Não fico com gente bi, porque sempre sentem falta de alguma coisa; 

- É só uma fase; 

- Você está com uma mulher, então você é lésbica; 

- Gente bi tem mais doença;

- Bi gosta de ménage; 

- Bi é sexualmente insatisfeita;

- Bi não é para se relacionar

- Você está em cima do muro...

Essas falas são velhas conhecidas de quem se entende no mundo enquanto bissexual. Isso porque não enxergam a nossa sexualidade enquanto possível, mas apenas como uma ação performática – conveniente – afinal podemos “escolher” viver na fase hétera quando necessário, e utilizar da luta LGBT+ para nos promover ou vitimizar quando oportuno.

Mulheres bi são fetichizadas, são vistas como infiéis, oportunistas e sexualmente mais disponíveis. Os homens bi, por sua vez, são completamente questionados, entendidos como homens gays que não têm coragem de se assumir.

Além disso, nos é deixado um profundo estigma de que não devemos ser levadas a sério, servindo apenas para “diversão”, pois relacionamentos monogâmicos não nos trariam plena satisfação, pois sempre sentiríamos falta de alguma coisa... como se gays, lésbicas, e pessoas héteras não traíssem ou não pudessem ter relações não-monogâmicas.

...você está em cima do muro...

Afinal... de que lado do muro eu deveria estar?; quem eu preciso convencer?; quem precisa validar a minha sexualidade? eu preciso escolher um lado para ser acolhida?

São essas as questões implantadas pela cis-heteronormatividade, a tal regra imperativa que dirige os comportamentos tanto das pessoas “cis-hetero”, como das pessoas “desviantes” – uma vez que ela é o suporte da estrutura social.

A bifobia, então, não é praticada com exclusividade por quem está do lado de lá do muro, mas também de quem deveria estar no corre junto com a gente – mas que não compreende a nossa subjetividade e sexualidade. 

(lembrando que nossa sexualidade e nossa identidade devem ser autodeclaradas e não referendadas ou rechaçadas por terceiros)

Por causa de tudo isso, a bifobia é grande, é grave e adoece!

De acordo com uma pesquisa da Universidade de Stanford, as pessoas bissexuais escondem sua sexualidade com mais frequência do que gays e lésbicas - enquanto somente 19% das pessoas bi revelaram a sua sexualidade para pessoas próximas, a porcentagem sobe para 75% entre lésbicas e gays. 

No campo da saúde mental, um estudo da Universidade de Oxford mostra que as mulheres bi tem mais chances de diagnóstico de depressão, distúrbios alimentares e de praticarem automutilação do que mulheres lésbicas.  

Esse grande sofrimento mental decorre do apagamento bi! Neste sentido, não é raro passarmos por situações em que precisamos ou achávamos que precisássemos escolher entre sermos hétero ou homossexuais. Lembrando que essa cobrança vem de fora e de dentro do movimento LGBT+. 

A bifobia faz com que muitos de nós desistam não apenas do espaço onde estão, da casa onde moram...mas desistam de si mesmos! 

Sabemos que a nossa vivência é por si só um ato revolucionário e político. 

É cansativo viver repetindo que nós existimos.

Precisamos falar sobre letramento queer (quem sabe em breve)... 

Seguimos .... sem ninguém para nos dizer de qual lado do muro devemos estar!


Fernanda Darcie

Instagram @fernanda_darcie


Referências

L Colledge, F Hickson, D Reid, P Weatherburn. Poorer mental health in UK bisexual women than lesbians: evidence from the UK 2007 Stonewall Women's Health Survey. Oxford University Press, Journal of Public Health. Oxford, 2015.

Rosenfeld, Michael J., Reuben J. Thomas, and Sonia Hausen. How Couples Meet and Stay Together 2017 fresh sample. Stanford University Libraries. Stanford, 2019.