Dossiê contra opositores: mais um passo em direção ao abismo autoritário
No final de julho uma reportagem do UOL revelou a existência de dossiês de investigação sigilosos a respeito de 579 servidores federais da segurança pública e de professores universitários, ligados ao movimento antifascista e de oposição ao presidente. Nestes relatórios, produzidos pela Diretoria de Inteligência da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) – órgão ligado ao Ministério da Justiça, constariam informações pessoais dos investigados, fotografias e endereços de redes sociais.
A Seopi era uma coordenadoria do Ministério da Justiça que foi alçada à condição de secretaria no dia 1º de janeiro de 2019, quando se iniciou o mandato do atual presidente, mantendo-se a vinculação à mesma pasta, então comandada pelo superministro Sérgio Moro. Na época, Moro afirmou que o objetivo da secretaria era o de coordenar operações policiais em nível nacional, mas desde o início já havia a previsão da atuação como órgão de inteligência. Com sua saída do ministério e a chegada do atual ministro, André Mendonça, a secretaria foi reformulada e se afastou das atribuições ligadas ao combate ao crime organizado e corrupção, centrando-se na atuação de inteligência.
No escândalo revelado pelo UOL, foi descoberto que essa secretaria teria elaborado um relatório chamado “Ações de Grupos Antifa e Policiais Antifascismo", no qual constam informações a respeito de 503 funcionários da segurança pública, da ativa ou já aposentados que assinaram um manifesto chamado “Policiais antifascismo em defesa da democracia popular”, divulgado em 05 de junho. A estes, se somam informações dos profissionais que em 2016 assinaram o "Manifesto de policiais pela legalidade democrática", contrário ao impeachment de Dilma Rousseff. No relatório, também foram incluídos professores universitários e especialistas tratados pelo dossiê como formadores de opinião ligados ao movimento.
É preciso ficar claro que não há justificativa legal para tal tipo de investigação, a qual se aproxima dos atos praticados durante a ditadura militar pelos órgãos de repressão, os quis fichavam e perseguiam opositores do regime, ou pessoas que simplesmente manifestavam alguma oposição que lhes parecia desagradável. E é preciso combater com veemência esse tipo de atuação, desde a sua origem, em função do perigoso precedente que pode representar.
Após o caso vir à tona, houve a troca do comando da secretaria e, após recuos e tentativas de abafar o caso, o Ministro da Justiça admitiu a existência da investigação em reunião com parlamentares do Congresso Nacional. Além disso, o partido Rede Sustentabilidade ajuizou uma ação perante o STF, que questiona a legalidade da produção do relatório, cujo julgamento está marcado para o próximo dia 19 de agosto.
Este fato precisa ser amplamente conhecido e discutido pois não só reafirma o caráter ditatorial que este governo assume sempre que lhe é possível, como mostra a necessidade de sermos sempre vigilantes. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril publicada em vídeo, o presidente cobrava relatórios diários de informação da Policia Federal, que não tem essa atribuição, e disse que o seu serviço particular de informações era o que funcionava. A existência desse dossiê dá mais uma dimensão concreta aos intentos persecutórios e autoritários do presidente, com o intuito de calar a democracia. Além disso, como revelou a revista Piauí desse mês de agosto, ele cogitou seriamente em dar um golpe, ao pretender enviar militares para destituir os ministros do Supremo, após uma ordem meramente procedimental da corte que lhe contrariava.
Nesse governo, já foram gastos 68% a mais com ações de inteligência e segurança institucional do que a média do governo Temer. Tal montante, ultrapassa R$ 90,9 milhões, conforme informações do jornal O Globo. Numa gestão que cogita explicitamente atentar contra outro poder, e cujo mandatário já falou que mandaria seus opositores para a “ponta da praia”, é difícil pensar que tais gastos estão sendo feitos em prol do combate à criminalidade e na defesa dos interesses nacionais. Não se pode desprezar que pode estar em curso a tentativa se criar uma rede articulada e obscura de perseguição de vozes contrárias ao governo, de modo a corroer as instituições da democracia, a qual também pode visar esconder os malfeitos da família do presidente, por meio da desarticulação de investigações e acobertamento de informações.
Nesta última quinta-feira, o STF se manifestou acerca dos limites da atuação dos órgãos de inteligência. Na decisão tomada, estabeleceram os ministros que o trabalho desses organismos demanda o veto a informações sigilosas, exigência de interesse público e requisição fundamenta. Em seu voto, a Ministra Carmem Lúcia afirmou que “Inteligência é atividade sensível do Estado, mas está posta na legislação como sendo necessária. Arapongagem é crime. Praticado pelo Estado, é ilícito gravíssimo. O agente que obtém dados sobre quem quer que seja fora da legalidade comete crime.”
Apesar de os critérios adotados para considerar a atuação legítima também poderem ser tidos como vagos, é um recado ao governo e, provavelmente, indica a postura a ser tomada no julgamento do próximo dia 19, especificamente relacionado com o dossiê. Resta saber se haverá o respeito aos limites impostos pelo STF, ou se mais cedo ou mais tarde a intenção golpista se concretizará, assentada numa já implementada rede de espionagem da qual não temos a dimensão.
Arthur Spada
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