Coletivo Indra

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Entre o desejo e as coisas que não têm preço

imagem Lena Vargas - Pinterest

A proposta inicial deste artigo era comentar técnicas e critérios para escolhas e decisões. O que nos leva a escolher uma candidatura ao invés de outra? Um bairro para morar? Uma pessoa para namorar? Uma roupa para vestir? Parar de fumar? No processo de escrita, descobri que o assunto são três conceitos:

“DESEJO, INFORMAÇÃO E CONHECIMENTO”.

Daí, eu proponho essas três fontes (desejo, informação e conhecimento) para montarmos os nossos critérios de escolha. Minhas hipóteses filosóficas, psicossociais, psicanalíticas, sociológicas e políticas são bem simples:

A INFORMAÇÃO E O CONHECIMENTO NÃO GARANTEM UMA ESCOLHA.  O DESEJO É SEMPRE MAIS PODEROSO.

Ninguém pára de fumar porque “descobriu” que o cigarro faz mal para a saúde numa palestra profundamente embasada. Não é a informação ou conhecimento que leva-nos a fumar ou parar; mas, o desejo. O mesmo nos outros âmbitos da vida, desde escolher alguém para uma parceria afetiva, decidir uma profissão, etc. Não estou dizendo que informação e conhecimento não entram na balança; mas, o peso é bem menor.

As pessoas votam numa candidata depois de ter lido o programa político e verificado suas credenciais técnicas para execução? Ou as frases de impacto são mais decisivas? Ora, se o desejo é mais poderoso do que o conhecimento. Isso quer dizer algo que já é sabido faz muito tempo. A crença de que decidimos baseados no conhecimento é um perigo.  A informação e o conhecimento só funcionam articuladamente com o desejo. Neste sentido, a cidadania política não pode mais ser tomada como algo que possa ser resolvido sem doses cavalares de desejo.

Nós precisamos falar do desejo para entender política. A política é um conjunto de tecnologias de gestão de recursos e implantação de agendas numa mediação entre interesses de diversos setores da sociedade. A herança iluminista que ainda nos assombra, traz uma crença acreditar que podemos “convencer” uns aos outros pelo bom uso da razão. Mas, os filósofos europeus iluministas não conheciam psicanálise. O pensador camaronês Achille Mbembe fala de algo muito importante no livro Crítica da razão negra, registrando que para entendermos o sujeito humano temos que compreender a neuroeconomia. Tal como nos diz o pensador camaronês Achille Mbembe, no contexto de ascensão e estabelecimento do capitalismo neoliberal, nós somos transformados em sujeitos neuroeconomicos. O que isso tudo quer dizer? Vamos por partes.

Primeiro, o neoliberalismo é um momento da história da humanidade em que todos os acontecimentos e coisas vivas possuem valor de mercado. Numa frase, tudo tem preço, inclusive as experiências mais íntimas. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han nos ajuda a entender que a vida privada tornada pública transforma todas as pessoas em coisas vendáveis. As redes sociais funcionam desfazendo fronteiras entre vida íntima e a esfera pública. O silêncio e a intimidade somem nas publicações sorridentes.

É NESSE CONTEXTO QUE O DESEJO É USADO, RECICLADO E REAPROVEITADO PARA QUE AS PESSOAS SE TRANSFORMEM EM ALGO QUE NÃO SÃO.

“A felicidade só é viável” se formos magros, ricos, famosos, aparentemente mais jovens do que realmente somos e coisas do gênero. Ao lado dos usos do desejo em promessas futuras de sermos algo que ainda não somos vem a objetificação. Nós precisamos nos tornar “coisas”, nossa relação com as pessoas parece estar na ordem do consumo.  E, como sujeitos não são “consumíveis” resta-nos um tipo de auto-objetificação radical e contínua para uma vida num mundo neoliberal. A condição de sujeito neuroeconomico é algo como ser uma coisa e um animal ao mesmo tempo. Todo o resto importa muito pouco ou nada.

É neste registro que o conhecimento e a informação têm pouco valor, daí fake news e o desprezo pelas ciências, artes e filosofia. O desafio colocado é simples: precisamos desejar ainda mais a condição de sujeitos, buscando informação e conhecimento e, sobretudo, redescobrirmos que a precificação e objetificação das experiências privadas tende a ser o prenúncio da morte da vida pública. Um bom começo pode ser não abrirmos mãos da informação e do conhecimento – incluindo o desejo de verdade que inspiram em nossos corações e mentes.

Afinal, conhecer e sentir nunca nascem separados. A história do Rei Midas é boa para ilustrar esse fenômeno. Um Rei tinha como maior desejo, transformar tudo em ouro. Numa ocasião, ele teve atendido o seu desejo por um gênio, e, tudo que ele tocava virava ouro. Ora, quando sentiu fome descobriu que não podia se alimentar de ouro. A minha hipótese é de que: os operadores do sistema neoliberal sofrem do complexo de rei Midas, daí seguem transformando coisas, atividades, experiências e seres vivos em mercadoria. O que pode até parecer paradoxal; mas, precificar tudo, empobrece a vida. Mesmo assim, eles trabalham para separar desejo, informação e conhecimento para suscitar um desprezo perigoso pelas coisas que não podemos comprar.

Renato Noguera

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