Entrevista com Fabio Leal sobre o curta “REFORMA”
Ao assistir “Reforma” revisitei aquele corpo indesejado, coagido, violentado. Pelos outros e, sobretudo, por mim. Ainda que - assim como eu - você habite um biótipo avesso ao representado no filme, a ponte identitária que nos aproxima do protagonista se alicerça na vivência cotidiana compartilhada do não pertencimento num modelo estético idealizado e opressor.
A magreza sempre foi uma companheira inconveniente e me deixou em maus lençóis com meu peito escavado, com a minha falta de bunda, com meus franzinos braços... Sempre haverá um cômodo incômodo a ser ajustado. E muitas vezes essa aversão nasce pelo olhar alheio e ganha sombras numa incompatibilidade entre desejo e forma.
Ouvir o elogio do protagonista ao saliente osso da cintura de outro personagem foi como voltar num passado próximo e me ver diante o admirando a beleza ali refletida. Mais que um simples corpo, uma história daquilo que sou em carne, alma e essência. Nesse exercício contínuo de auto aceitação, convido você a ler essa entrevista com o diretor, roteirista e ator Fabio Leal e a refletir acerca dos corpos no mundo e seus mundos.
Perguntas:
I - Um dos elementos narrativos de "Reforma" que chamou minha atenção foi a presença constante do silêncio no diálogo entre o Francisco, seu personagem, e a Flávia. Esse abismo comunicativo em contraponto a intimidade da relação de amizade entre eles representa o tabu e a falta de conversa da sociedade atual sobre sexo, corpos e afetos? Como fazer uma cinema independente abordando temas ainda embrulhados no véu do falso puritanismo colabora na desconstrução de tabus e na ruptura de comportamentos preconceituosos, repressivos?
Sim, a sociedade conversa sobre sexo e corpos e afetos, mas talvez sob um modelo padrão… mesmo a intimidade entre amigos ainda esconde um medo de falar sobre fragilidades, sobre ser diferente do padrão vigente. Isso inclui corpos, sexualidades, orientação sexual… tudo que diverge um pouco… que se estabelece mesmo em grupos já marginalizados, como o grupo gay. Quando eu faço o filme eu não penso muito nos efeitos que ele terá no sentido de sociedade. Eu quero contar algo e espero que aquilo ressoe em quem vai ver. Agora de que forma isso se dará, como ela vai interpretar aquilo que está vendo, eu me sinto livre pra não pensar nisso. Ou melhor, me sinto livre para que cada um crie seu próprio filme a partir do que eu estou propondo com aquelas imagens… Se isso colaborar na desconstrução de tabus e na ruptura de comportamentos preconceituosos ótimo, mas não é um filme que tem essa agenda, esse intuito. É um filme que se ele puder trazer isso como um efeito colateral eu acho incrível. Eu não comungo muito de uma ideia de cinema militante que tenha como propósito romper tabus ou qualquer outra mudança nesse sentido, mais pragmática. Eu prefiro os filmes que colocam as pessoas pra pensar.
II - Além de assinar o roteiro e a direção você atua no filme. A história do Francisco surge da sua relação com seu próprio corpo e com o mundo ao redor? A reforma do título seria um processo pessoal de questionamentos e aceitação da nossa própria morada, principalmente, numa transformação que vai além da fachada, que começa de dentro pra fora?
A história do filme surge inicialmente da minha relação com o meu corpo e como as pessoas ao redor lidam com ele, como eu lido com essas pessoas ao redor a partir dele, mas isso é um ponto de partida. O personagem não sou eu, ele não reage da forma como eu reajo… enfim... não faz as coisas que eu faço. O ponto de partida foi pensar num corpo gordo no que ele gera, tanto para as outras pessoas como pra quem o habita, nesse sentido sexual. E a partir daí fui deixando vir um processo de criativo e não autobiográfico. Sobre o que seria a reforma do título, eu preferia deixar em aberto pra que cada um tenha a sua interpretação do que impor a minha. Acho meio limitador.
III - A produção audiovisual brasileira vive um momento explícito e perigoso de desmonte e censura. Como o Fábio ator, diretor, realizador audiovisual e artista vê esses tempos sombrios da cena cultural do país? A resistência do cinema nacional precisa mais do que nunca se alicerçar num contato mais corpo a corpo, mais direto com o público? A obra transcender a tela é o caminho?
Acho que todo mundo que trabalha com arte e cultura está, no mínimo, muito ansioso e com muito temor do que será daqui pra frente. Eu acho que nenhum de nós pretende deixar de fazer arte. Faremos não importa o que aconteça no cenário nacional. A grande questão é a precarização do nosso trabalho. Isso é um trabalho, sempre foi considerado um trabalho… há uns dez anos a gente tava entrando num processo de não só ser reconhecido como trabalhador da cultura, mas como isso ser um trabalho bem visto, respeitado, um trabalho que ressoa não apenas no Brasil, mas fora dele, levando nossa cultura pro mundo e trazendo do mundo coisas pra cá, pra nossa língua. Aí de uma hora pra outra a gente vê tudo desmoronando a serviço de não se sabe o quê. No caso específico do cinema tem 300 mil trabalhadores do audiovisual com suas carreiras em risco. Eu acho que a resistência, essa ideia de resistência meio romântica, ela talvez seja um pouco prejudicial no sentido de que ela pode dificultar a gente de enxergar caminhos de resistência real às políticas públicas. Eu acho que resistir não é só você fazer um filme de baixo orçamento e com seu próprio dinheiro, etc e tal… Resistir é também contra atacar e, no caso específico de agora, a gente tem que tentar judicializar o máximo possível por que é isso, esse é o nosso trabalho. Eu trabalho com audiovisual a sete anos, apenas com audiovisual. E além dos meus projetos autorais, tem projetos de outras pessoas. Assim como eu existem 300 mil outras pessoas que pagam suas contas, que tem famílias ou não, mas que gerem suas vidas de forma honesta e tudo mais fazendo um trabalho digno. E é preciso garantir que esse trabalho digno continue a ser feito e que continuemos a ser remunerados por ele.
Felipe Ferreira
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