Coletivo Indra

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Era o dia da minha formatura

Me lembro exatamente do dia dessa foto.

Se eu fechar os olhos e me esforçar, quase posso sentir o cheiro. Era o dia da minha formatura, daquilo que chamávamos em tempos atrás de "segundo grau", e agora, chamamos de ensino médio, eu estava ansiosa por esse dia. Ainda tinha naquela época o sonho dourado da faculdade, que salvaria todo o resto da minha existência, sonho esse que nunca se concretizou.

Quando criança, eu havia feito um plano de vida que era o seguinte: quando eu fosse bem velha e fizesse 18 anos (ah... a ilusão numérica da idade, hehehe), já haveria terminado a escola, iria para a faculdade e finalmente poderia ser eu... Eu me despediria dessa casca que eu "usava" e finalmente, seria eu. Como uma cobra que troca de pele, ou uma lagarta que vira borboleta. Não foi assim...

Aliás, raramente meus planos "milimétricamente arquitetados" davam ou deram certo…. minha vida foi mais surpresa e improviso que todo e qualquer planejamento que fiz...

Mas voltando a esse dia, foi tudo ao contrário. Eu tinha 17 anos e meu prazo para a mudança de vida que eu havia planejado se extinguia e nada daquilo que eu planejei acontecera... Eu continuava sem emprego e sem possibilidade de conseguir qualquer coisa naquela cidade do interior. Eu continuava aprisionada naquela casca, continuava triste, sem perspectiva.

O tal dia da mudança havia chegado, mas nada tinha saído como no meu plano adolescente e agora eu já dava os passos para vida adulta, sem nenhuma mudança. Nesse dia, tudo deu errado. Eu não tinha roupa para ir, a camisa e o blazer que eu usava foram emprestadas às pressas pelo pai de uma amiga.

A calça era minha e estava suja, aliás era a única que tinha para ocasiões especiais. Tive uma espécie de herpes nervosa, que resultou numa pequenina feridinha acima do lábio, meu rosto ficou com uma mancha, o que comprometeria ainda mais as fotos. Já que para o resto da vida a lembrança seria com essa imagem, que não eu não me reconheceria depois...

As fotos, aliás, eram um problema para mim, não tinha dinheiro para pagá-las. Atento ao fato de que eu fui consegui-las quase 5 anos depois porque uma amiga viu o fotógrafo, na sessão de fotos que ninguém busca, e que vão para o lixo creio eu, e lembrou de me avisar. Eu estava muito triste. Na festa de despedida da turma, o menino que eu era apaixonada e que era meu colega, ficou com outra, e foram juntos à formatura. Meu pai não quis ir à formatura embora tivesse sido insistentemente convidado. Ele disse em palavras de alto e bom som "eu não vou nisso, pra eu passar vergonha com tudo isso"... e não foi.

Minha mãe, nervosa sem saber o que fazer, foi e obrigou minha irmã a ir junto. Uma amiga que estava passando uns dias lá em casa (o que causou ainda mais raiva nele) foi... e assim transcorreu esse dia.

Na volta, voltamos para casa rindo e chegamos em casa em silêncio para não aborrecer meu pai que não quis ir, situação recorrente aliás... O dia acabou e tudo voltou a ser como era antes. Um sofrimento por tudo aquilo. Chorei muito aquele dia e nos seguintes. Nada iria mudar. Eu ia sofrer por toda a vida. Algum tempo depois tomei coragem e acabei pedindo para ir embora da cidade. Minha mãe sofreu, eu sofri... Foi o primeiro passo... Anos depois aqui estou contando isso para vocês. Parece que algumas coisas mudaram, né?

Pessoas trans tem até as suas lembranças mais antigas negadas, não me sinto muito bem com essas lembranças, nem fotos, mas é aquilo que eu tenho e que me deram quando criança.

SEMPRE HÁ ALGUÉM QUE LEMBRA, INSISTE NAQUELA PESSOA E PROCURA COMPARAÇÕES DO ONTEM COM O HOJE, SEM TER A SENSIBILIDADE DE ENTENDER O QUANTO DOI E É DOLORIDA E DOLOROSA ESSA MUDANÇA.

Não me deram escuta e compreensão. O que me ofereceram e deram foi a "possibilidade" de ser como eles queriam, porque afinal "o que outros iriam pensar?” Se fosse diferente, não é?

As lembranças doem...

Os planos, mesmo que de maneira torta, se concretizaram. Ainda sofro por algumas questões, mas quem não né?

Há muitas páginas a serem lidas, relidas e escritas...

Tomara que minha próxima formatura, se houver uma, seja mais doce e delicada comigo...

Nem vou planejar nada... vou deixar acontecer...

 (Na foto minha mãe Ângela, um eu que já existiu mais não existe mais e minha irmã Vanusa.)

Valéria Barcellos

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