Coletivo Indra

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Erva coração

Que momento insano de mundo estamos vivendo... a 3 meses George Floyd foi assassinado nos EUA por sufocamento depois de dizer – enquanto era imobilizado com as mãos algemadas e um joelho no pescoço – que não conseguia respirar. Ele repetiu isso por mais de 20 vezes, por mais de 8 minutos em um vídeo gravado por várias pessoas e câmeras de segurança do local. Agora a defesa dos policiais esta argumentando que ele se matou “devido a uma overdose do opióide Fentanyl combinada com uma doença cardíaca pré-existente 

Afinal, todo negro é drogado mesmo...

Semana passada em Kenosha nos EUA, Jacob Blake, de 29 anos, é atingido por 7 tiros nas costas por um policial branco, apoiado por mais dois policiais. Ele esta vivo, mas imobilizado da cintura para baixo. Os filhos de 3, 5 e 8 anos estavam dentro do carro e viram tudo o que aconteceu com o pai. Os policiais só se defendiam.

Afinal, todo negro é bandido, anda armado e pode atirar a qualquer momento...

E o que as crianças viram? “Não importa, não são crianças, são futuros delinquentes! ”

(Cuidado com o “o ódio que você semeia” Tupack já dizia...)

Na quarta feira passada, um jovem branco na mesma cidade onde Jacob foi atingido, atirou em duas pessoas durante uma manifestação, e quando a “tropa de choque” chegou, vi uma das cenas mais bizarras da semana: o jovem branco, de mãos para cima e a AR15 pendurada, viu os policiais passarem direto por ele, vou repetir, PASSARAM DIRETO POR ELE, e seguiram na direção de quem? Dos manifestantes NEGROS. O Estado com essa atitude, endossa o feito do menino racista e o pensamento de que os bandidos somos nós negros, independentemente de qualquer trajetória. Somos os vilões, dos quais o povo “de bem” precisa e deve se defender. Não é muito diferente daqui com nossas bizarrices traduzidas em Saris, PMs assassinos e assassinados e por aí vai.

Difícil manter a esperança e continuar lutando. Difícil entender como fazer a diferença. 

E então, quando menos se espera, temos a notícia de que uma luz de resistência se apaga. 

Nosso Rei se foi. Sem aviso prévio. Se foi levado por um sofrimento guardado em silêncio e, pelo que parece, resignação. O que o torna ainda mais digno do título que carregava. 

Depois de nos inspirar em vários personagens emblemáticos para o povo negro como James Brown (GetOn Up), Jackie Robinson (42 – A História de Uma Lenda) e Thurgood Marshall (Marshall – Igualdade e Justiça),Chadwick Boseman se foi levado pelo câncer deixando uma legião de fãs perplexos.

Ele não representava só um super herói de um blockbustermultimilionário. Não. Sua trajetória e as escolhas feitas nesse caminho, o levaram a conduzir o que poderia ser só mais um herói a um patamar de representatividade que transcendeu e muito as telas de cinema e o mercado cinematográfico. O que ele e seus companheiros conseguiram passar para cada espectador era a força de um subtexto que todos carregavam na vida, no sangue, na pele.

Então, tomamos para nós uma história como verdade de um futuro que no passado nos foi roubado. 

Ele era o líder que os negros queriam seguir. Governava com grandeza uma pátria que eu queria dizer ser minha. 

Vimos a negritude ser exaltada em extrema potência e possibilidades. O criador do personagem e de seu mundo pode ser branco, mas esse personagem e esse mundo só alcançou a dimensão que alcançou por conta de atores e desenvolvedores negros que viram uma oportunidade e souberam fazer dela um espelho para refletir nosso passado de glória e nosso futuro de poder, grandeza e possibilidades.

Afinal, não é todo negro que é drogado

Afinal, não é todo negro que é bandido e que, lógico, anda armado.

Uma onda de auto estima e coragem tomou de assalto negros pelo mundo todo. Salas de cinema lotadas para ver em conjunto o filme, como uma ação política. Os chamados Rolezinhos. 

Eu participei de um no Rio de janeiro e vivi uma das maiores emoções de minha vida vendo o cinema lotado de pessoas majoritariamente negras se levantarem no final e, de pé, aplaudirem e gritarem num mesmo coro um som de guerra reproduzido no filme com um dos braços erguidos e os punhos cerrados.

Foi como se toda a nossa ancestralidade fosse desperta em cada célula de nosso corpo e a partir dali, tudo seria diferente.

E então, nosso Rei se foi... tão cedo! Com apenas 40 e poucos anos! Um amigo querido disse que: “...Esse menino Chadwick, assim que entrou em cena voltou logo para casa. Ele só queria mandar um recado e mandou. Coisa de Orixa! Olorum sabe o que faz!”

Lendo isso me vem um acalanto em relação a todo esse momento sombrio que estamos vivendo. E a certeza de que cada um tem uma missão para si ou para o mundo. E que uma vez que a semente é plantada em solo fértil... ela brotará e a transformação será real.

Chadwick deu vida a uma Wakanda que representa a glória, o poder e as potencialidades do povo preto invisibilizadas e negadas por séculos a fio. Numa construção afro futurista ele deu vida ao que poderíamos ter sido se não tivessem nos roubado, mas principalmente ao que podemos ser porque dentro de nós carregamos essa centelha de poder.

Ele, com sua representação, nos deixou como legado sua “erva coração” para que possamos acessar toda vez que a dúvida ou o medo pairar e entrarmos em contato com o que temos de mais precioso.

A sensação que as vezes tenho é de que a vida esta nos convocando para uma grande e inevitável transformação.Antevendo mais um pico de caos que viveríamos, nos trouxe a representação de um rei na velocidade e grandeza de um raio que surge, ilumina, desperta as consciências e desaparece em seu ponto mais alto.

Não é possível ficar inertes aos acontecimentos e ao que eles estão provocando no povo negro em todo o mundo.

Mesmo diante dos absurdos que ainda presenciamos, que possamos manter a luz de nosso Raio/Rei acesa dentro de nós para nos lançarmos contra a opressão e conquistarmos de vez a nossa Wakanda.

Fernando Pessoa escreveu: “Conta a lenda que dormia uma princesa encantada / a quem só despertaria um infante/ que viria de além do muro da estrada...”

Pois bem, a princesa é nossa consciência ancestral, e ela foi desperta por este infante guerreiro grandioso que mesmo numa batalha pessoal não deixou de lutar o bom combate por algo muito maior do que ele.

A consciência esta desperta... e não tem volta!

Tati Tiburcio

Instagram @tati_tiburcio