Coletivo Indra

View Original

Estamos de cabeça para baixo

Julho para os budistas é o mês de Finados, ou Obon em japonês. Estranho, não? A data refere-se a um Sutra (discursa do Buda) cuja história ocorre no sétimo mês lunar. E como lidamos com a finitude, nossa e a do outro? Buscamos uma segurança de alguma forma para manter a transitoriedade da vida. O tempo é o fator crucial e a morte é o grande dilema. Experimentamos a realidade por meio da condição humana e estamos morrendo a todo instante. Vivenciamos a realidade segundo nossas crenças, valores e percepções. A dor, contudo, é comum a todos.

No passado soube que os japoneses celebravam a morte e dançavam em torno de um taikô (tambor). Isso me intrigou durante anos até conhecer o budismo. Como assim vocês dançam felizes lembrando da morte? A origem desta festa remonta a um Sutra proferido pelo Buda Shakyamuni, vou contar brevemente a respeito dele. O Sutra Ullambana, ou em japonês Urabon diz:

Um discípulo do Buda chamado Mahamaudgalyayana (Mokuren, em japonês para ficar mais fácil) tinha qualidades sobrenaturais e sentia grande desejo de manifestar gratidão e transferir méritos a seus pais para que eles viessem a renascer na Terra Pura e assim reencontrá-los um dia. Sua mãe, porém, havia renascida no Reino dos Famintos (um dos Seis Reinos da Existência *), enfraquecida, procurando alimentos e de cabeça para baixo. Mokuren, por seus poderes transcendentais, foi até este Reino e procurou aliviá-la oferecendo uma tigela com arroz, mas cada punhado levado à boca se convertiam em pedaços de carvão em brasa. Mokuren se pôs a chorar e correu ao Buda para contar-lhe sobre sua visão.

O Buda Shakyamuni disse a Mokuren que sua mãe havia cometido graves erros em vida e que nada poderia fazer com seus poderes. Explicou, então, que se quisesse ajudá-la deveria pedir ao Sangha (comunidade de monges) que seus méritos fizesse algo liberando-a de seus erros e sofrimentos.

O Buda disse a todos:

“Honrados homens e mulheres, lembrem-se, sempre cheios de gratidão da bondade de seus pais de sete gerações e na lua cheia do sétimo mês de cada ano, façam oferendas ao Buda e ao Sangha para retribuir os sacrifícios feitos pelos seus antepassados.”

Durante a estação de chuvas, os monges permaneciam nos templos e na lua cheia do sétimo mês se reuniam para realizar a Cerimônia de Confissão de erros passados. Os discípulos vinham ao templo para doar comida, frutas, óleo para lamparinas, roupas e utensílios pedindo aos monges que com seus méritos salvassem seus pais das sete últimas gerações, incluindo os da presente vida. Ao ouvir os ensinamentos do Buda, todos os monges e discípulos se encheram de alegria. O poder da Doação, Generosidade, Danna em sânscrito, a primeira das Seis Perfeições. Toda a angústia de Mokuren teve fim e sua mãe foi liberada do sofrimento vivido no Reino dos Famintos. Assim, Mokuren e as discípulos de Buda se encheram de alegria e saíram cantando, dançando batendo palmas. Essa é a origem da dança de Obon, ou Bon Odori. Dê uma olhada na internet para ver as festividades.

O Reino dos Famintos está relacionado a insatisfação dos desejos, da ganância e da avareza. Podemos entender esses Reinos como planos etéreos ou estados mentais da nossa psiquê. Qual mensagem desse Sutra? A mãe de Mokuren está nos dizendo: ei, não sou eu quem estou de cabeça para baixo, mas vocês imersos e invertidos em suas ganancias, raivas, ofensas, ódios, mediocridades, ainda em vida. Prestem atenção aos seus feitos, falas e pensamentos, eles gerarão a qualidade desta vida e das futuras, tanto suas e quanto a de outros ao seu redor.

Somos com frequência incitados pelos desejos, ele nos dá sentido à vida, movimento aos anseios, dá graça e prazer nos contatos seja o que for. Porém, queremos satisfazer todos e não prestamos mais atenção na precariedade da vida. Nos enganamos a todo instante, como Peter Pan num sonho dourado. E o que fazemos com nosso tempo, tão precioso segundo que pode alterar a minha vida como a do outro? Como criamos nossa narrativa? Vemos pessoas em estados tão bestiais, talvez ai possamos interpretar o ser humano renascido no reino dos animais. Este é o único segundo que você tem. Os demais segundos são pura especulação.

Em japonês há uma frase que diz - ichigô, ichiê. Frases orientais trazem um interessante conteúdo filosófico. Ela diz:

em um encontro, uma oportunidade.

A cada pessoa que cruzamos, mesmo por um segundo, uma semana, um amor de doze anos, uma vida toda que me foi concedida, todas elas alteram nossas vidas e nós a delas. Queremos falar tanto com os mortos, mas porque não falarmos com os vivos? Com os vivos trocamos mensagens de whatapp, e com os mortos queremos falar. No Dhammapada, o Buda diz:

os homens se preocupam com o que não é essencial e não se preocupam com o que é essencial.

Estamos invertidos, sem conseguir consumir o que é essencial, como a mãe de Mokuren.

Agora, a Vida vive você. E como você vive a Vida? Pense nisso!

Vivemos como se nunca fossemos morrer e morremos como se nunca tivéssemos vivido.

Dalai Lama

*Seis Reinos são de Seres: Celestiais, Humanos, Animais, Famintos, Titãs, Infernais


Rev. Jean Tetsuji釋哲慈

Gassho

Instagram @jeantetsuji | @budismo_lgbt

Siga no instagram @coletivo_indra

Templo Nambei Honganji Brasil Betsuin
www.amida.org.br @nambeihonganji