Coletivo Indra

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Eu não sou seu negro!

Essa semana eu tive uma experiência no mínimo estressante, porém, interessante nas redes sociais. Nunca discuto nesses lugares pois é terra de ninguém, onde todo mundo tem muita opinião e pouca (ou nenhuma) coragem de mostrar a cara. Na maioria das vezes não temos certeza de com quem estamos trocando. E também corremos o risco da única troca que se consegue alcançar é a de farpas. Mas, por se tratar de um ataque a uma pessoa próxima e na tentativa tola de propor alguma reflexão apesar do lugar, me manifestei. Pronto! Foi o suficiente para perder um dia emocionalmente falando, mas também para perceber, como as estratégias do racismo se alternam e se renovam a cada dia na tentativa bem-sucedida de continuar existindo.

Com o advento da expressão “politicamente correto”, ser racista, machista, homofóbico, entre outros, no modo de falar, de escrever, de se portar, passou a ser ainda mais mal visto.

E os racistas e preconceituosos de plantão começaram a se incomodar com o policiamento (mais do que correto, diga-se de passagem) e criaram sua própria expressão de defesa: o famoso “mimimi”. Tudo que era questionado começou a ser rotulado de “mimimi” na tentativa de desqualificar o discurso proferido ou a queixa apresentada pelas ditas minorias. 

E o “mimimi” ganhou força no mundo através do crescimento de ideias reacionárias de governantes autoritários que legitimam o ódio e as divergências acirradas. Essas ideias tiraram do armário todos esses discursos desmerecedores do “outro” com uma força assustadora. Os opressores de plantão passaram a não se constrangerem mais pelo politicamente correto. Jogaram no lixo tal posicionamento e passaram por cima. Se sentiram confiantes ironizando, debochando de quem pensa diferente. Verbalizando sua ode à barbárie humanitária em expressões do tipo “vamos mirar só na cabecinha” para justificar assassinatos de bandidos (lê-se: preto, pobre, favelado) nas comunidades cariocas, por exemplo. 

E na certeza da impunidade e, do que eu considero pior, da legitimação de seus atos atrozes, chegamos a um assassinato filmado por 8 minutos e 46 segundos de um homem negro diante do mundo. O mundo explodiu e o “mimimi” perdeu força diante de um ato terrivelmente emblemático.

Mas o racismo não dá um só segundo de descanso e logo se recompõe para se manter atuante através dos reacionários de plantão, mas também, e principalmente – o que para nós é muuuito perigoso – dos ditos aliados. 

Nesse momento, vemos estratégias antigas de desmerecimento do nosso discurso ganhando força novamente para ocupar o lugar do “mimimi”. Como por exemplo, em estereótipos como “o negro(a) raivoso(a)” aquele que não sabe ou não consegue dialogar. Animal grosseiro.

Passaram a nos agredir falando manso, de forma pomposa até, com sorriso no rosto e muitas vezes dizendo querer aprender conosco, nos convidando a abrir nossos horizontes para seguirmos juntos – desde que sob as regras deles. Mas quando dizemos não somos arrastados para um mar de afirmações equivocadas, desencontradas, maldosas, inúteis, que na tentativa de dialogar somos engolidos e sufocados em um enorme desgaste e minar de forças. 

Foi justo o que aconteceu essa semana. E quis falar sobre porque é preciso estar atento para isso. Nem sempre o diálogo é produtivo. Nem sempre ele busca o entendimento ou avanço na questão. As vezes ele só se presta a desqualificar, confundir, enlouquecer e tirar de nós o foco. 

Precisamos estar atentos o tempo todo. É cansativo, mas necessário. Vou me ater aos pontos dos comentários que denotam, a meu ver, essa estratégia perversa, consciente ou não, de tomar para si o protagonismo do discurso e desqualificar quem o carrega na pele.

O AFETO COMO ESCUDO E GRILHÃO

“MEU NÊGO me explica muito sobre racismo (...) ele É PRETO, BEM PRETO. (...) sou esposa de PRETO, padrasto PRETO, com dois irmãos PRETOS. Eu vejo tudo o que eles passam na vida e reconheço racismo de longe”

 O fato de uma pessoa BRANCA estar envolvida emocionalmente com uma pessoa PRETA, e de pertencer a uma família com integrantes PRETOS não dá a ela o protagonismo da questão.

Uma pessoa branca nessa condição tem a obrigação de entender o seu lugar no discurso: um lugar secundário. Não pode usar do afeto para tomar para si o protagonismo da questão e achar que tem o direito de falar pelo negro em pé de igualdade. Subalternizando o indivíduo a seu lado quando o chama de SEU, inclusive, denotando propriedade disfarçada de afeto. MEU NÊGO(A) quando usado pelo sujeito branco remete, por conta do racismo estrutural nesse caso presente na linguagem, a uma expressão de propriedade do período escravocrata deste país. Em uma relação interracial consciente o sujeito branco da relação deveria saber que, mesmo sendo seu sentimento verdadeiro – até porque não é isto que estamos aqui discutindo – essa expressão, no contexto em que vivemos, não poderia ser tradutora de seus sentimentos, pois esta impregnada de um significante perverso e desumano. 

O fato de uma pessoa branca se relacionar com uma pessoa negra, não coloca seus argumentos acima de nenhum outro. Muito menos acima do argumento de uma pessoa PRETA com a qual ela não tem que concordar, mas se colocar no lugar de refletir e tentar entender o ponto de vista apresentado não nega-lo de pronto. 

O fato de uma pessoa conviver com judeus, namorar ou estar casado(a) com um judeu, não a torna judia. Não faz com que essa pessoa compreenda o que esse povo passou na pele dentro dos campos de concentração. Não lhe dá o direito de falar por eles ou de falar como se fosse um deles. 

Estar num relacionamento interracial não é um escudo protetor para um discurso racista disfarçado de aliado.

O NEGRO(A) RAIVOSO(A)

“Eu não vou ler seus livros! Eu vivo com PRETOS. Eu vejo o que eles passam”

Mas você NÃO É NEGRO, branca! 

Antes dessa frase foi passada à “BRANCA dona de SEU PRETO” uma lista de autores negros e um branco que se debruçaram sobre a questão racial e suas diversas nuances. Foi sugerido a ela ler essa literatura que lhe ajudaria a entender o ponto de vista apresentado. No entanto, a pessoa insiste no argumento de que o fato de estar cercada de negros já lhe confere, como que por osmose, a compreensão total do racismo no Brasil a ponto de não precisar saber o que diz Djamila Ribeiro, Abdias Nascimento, Lélia Gonzales, Angela Davis, Milton Santos, Jacques Derrida, Silvio Almeida. Eu como mulher negra não me sinto apta a falar sobre tais questões baseada apenas no meu empirismo... mas a mulher BRANCA, sim. Porque é casada com um PRETO, tem padrasto PRETO, e dois irmãos PRETOS. Pelo jeito isso a torna mais negra que todos os autores acima mencionados. Só que não!

É importante que se coloque aqui também o fato de que, todo esse debate nasce de um debate anterior entre uma outra mulher BRANCA e um jovem PRETO. 

Nesse confronto, a mulher BRANCA, foi bastante debochada e irônica com o jovem PRETO, no entanto o jovem respondia de forma a convoca-la a reflexão. Ao bom debate. A entender o que a desagradava em sua fala e tentar lhe apresentar outra forma de encarar o problema a partir de sua ótica. De seu lugar de fala como homem negro. 

O embate se desenvolveu de forma extensa numa troca de quase cinco mensagens para cada. No entanto, “BRANCA dona de SEU PRETO”, só se posicionou quando uma outra pessoa fez um comentário mais agressivo utilizando um xingamento.

Veja, em nenhum momento “BRANCA dona de SEU PRETO”, baseou seu descontentamento em nenhum ponto da fala do jovem PRETO. Ela se fiou o tempo inteiro no xingamento proferido por uma pessoa indignada que entrou na conversa. Era tudo o que ela precisava para calçar a sua argumentação na “falta de diálogo traduzida em xingamento”.

“BRANCA dona de SEU PRETO” afirma então que não sabemos dialogar, partimos logo para ignorância. Ela ignora tudo o que o jovem PRETO argumentou e confere a ele as consequências de uma fala que não foi sua, para desmerecer o seu discurso e posteriormente, o meu, visto que entrei em defesa do jovem PRETO.

Ao fazer isso, chamei a atenção, não para o xingamento, mas para as inúmeras ofensas racistas disfarçadas de ironia proferidas pela outra BRANCA que levaram ao xingamento. 

“BRANCA dona de SEU PRETO” se fia na estratégia perfeita construída pelo racista quando nos pressiona até não aguentarmos mais, e ai, quando partimos para cima, seja no debate ou na perda da paciência, somos RAIVOSOS, PASSIVO – AGRESSIVOS, NÃO SABEMOS DIALOGAR. Nos culpam até mesmo pela segregação criada pelo racista.

“...essa segregação que algumas pessoas criaram quando separam “nós” e “vocês”, “meu povo”. NOSSO povo é o mesmo: brasileiro, miscigenado, sujo de sangue do assassinato de diversos inocentes (...) assassinado os pretos, muitas vezes vendidos na África por outros pretos! (a História comprova que era comercio e não “caça”- por falta de palavra melhor) e depois foram tantos assassinados por divergências políticas. NOSSOS povo é manchado de sangue e NOSSO povo se segregou em pequenos grupos que não aceitam outros...”

Segundo “BRANCA dona de SEU PRETO”, que disse ser filósofa formada pela UFRJ, o racismo foi criado pelo preto que, inclusive em África, comercializou o próprio preto. E segundo “SEU PRETO”, que ela diz ser Historiador...ela tem razão.

Diante de tudo isso, fico pensando que ainda temos um árduo caminho pela frente... tempos difíceis ainda nos aguardam.

ATENÇÃO PARA O REFRÃO!

Tati Tiburcio

Instagram @tati_tiburcio