Coletivo Indra

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Eu nunca tive uma bicicleta

Valéria Barcellos

Numa noite de clima agradável, para os meus padrões gaúchos, sentei em frente ao computador pra escrever essa coluna. Uma série de temas me vinham a cabeça, mas um não saía dela: a hipervalorização humana a tudo que não se tem e o excesso de valor ao que se perdeu.

Eu por exemplo, nunca tive uma bicicleta. Estou em São Paulo nesse minuto, na casa de um amigo que está em viagem na Alemanha. Sua casa é limpa, quase sem móveis, mas muito aconchegante e repleta de livros, o que por si só, ao menos pra mim, já enche uma casa. Não pude deixar de pensar a primeira vista, do quanto gostaria de estar ali, ocupando aquele espaço, vivendo e preenchendo com minhas coisas. Não é inveja. Inveja não é querer ser como o outro, é querer ser o outro. Esse sentimento eu não partilho. Tenho inveja mesmo de quem teve uma bicicleta.

Resolvi repensar um pouco da vida, estou aqui sentada de fronte a um belo computador, voltei há pouco do supermercado, onde comprei tudo que quis e tive vontade.  Preparei um jantar simples, ”mas gostoso”, segundo meu noivo.

Não posso deixar de contar a vocês que fiquei noiva há algumas semanas atrás, num lindo pedido de joelhos com aliança linda e tudo!

Acordei tarde, descansei até o horário que pude. No turbilhão de notícias descubro que a grande atriz Ruth de Souza foi brilhar no céu dos artistas. Verificando minha conta bancária (ela finalmente está no verde, ou seria azul?), um cachê entrou! Fiz um lindo show no fim de semana. Casa lotada, emoção! E ainda persiste na minha cabeça “a bicicleta”! A cidade de São Paulo me assusta pelo tamanho e me frustra pela pequeneza em alguns aspectos. Gosto muito, mas desgosto um pouco. É muito curioso dizer “:boa tarde/noite/dia..bom trabalho” e ouvir um resmungo ou muitas vezes não ouvir nada. Certamente eles não tiveram bicicleta também.

Parei o que fazia, com o cheiro de queimado de um bolo que meu noivo faz na cozinha. O adverti que talvez tivesse crescido muito e derramado, por isso queimou. Ouço resmungos. Rio de canto de boca:

-“tô com fome”. Ele diz, rio de novo.

Uma felicidade toma conta do meu peito. Levanto, vou até a cozinha, dou-lhe um beijo.

Em suma, reclamamos de tudo a toda hora e não vemos o quanto temos “coisas” importantes a nossa volta. Podemos comer, vestir, abraçar, beijar (nem todos né, lembremos que sou uma mulher trans e pra mim isso é pouco diferente), andar nus dentro de nossas casas (porque temos casas).

Valorizamos o que não temos, só damos um imenso valor quando as pessoas morre. Por exemplo as notícias sobre o falecimento de Dona Ruth de Souza: dama, deusa, sendo que em vida poucos sabiam que ela é uma das grandes atrizes brasileiras. Assim, mortos ganham mais flores que os vivos, pelo remorso que os vivos sentem, certamente. Percebi que o que me faz penar, não é não ter tido uma bicicleta, mas a liberdade do vento no cabelo que ela me proporcionaria.

A gente reclama pelo que não tem, mas o que achamos que não temos está ali: a sensação, o sentimento. Acho que vou comprar uma bicicleta, Já que a sensação de liberdade, essa eu tenho de graça aqui e agora!

Valéria Barcellos

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