Eu vejo você
Na semana de estreia do filme SIMONAL, tomei uma overdose do “assunto”. Fui a uma sessão no meio do dia, li várias matérias antigas sobre ele e assisti ao documentário SIMONAL – NINGUÉM SABE O DURO QUE DEI. Conhecia a história, mas sem muita profundidade de detalhes. E ali, sentada na sala de cinema, mesmo diante de uma obra de ficção baseada em fatos reais, fui sendo tomada por um sentimento que conheço bem: compreensão de situações, indignação, tristeza, alguma raiva, mas principalmente a constatação que pouca coisa mudou (ou apenas foram feitas algumas concessões para que a ordem dos fatores não alterasse a soma).
Sim, conseguimos muitas vitorias. Sim, temos mais visibilidade hoje do que em muito tempo. Mas a nossa ascensão, vitória, sucesso, beleza, ainda não são vistos com naturalidade. NÓS ainda não somos vistos com naturalidade quando estamos fora de um comportamento que corresponda ao imaginário CRIADO para nós. Ainda somos vítimas de padrões aos quais muitos de nós se esforçam para alcançar pelos mais diversos motivos, e cada um deles não poderá ser comparado com um motivo “branco” em hipótese alguma porque não estamos em pé de igualdade nessas relações.
Falo muito da invisibilidade do sujeito negro e tanto no filme quanto no documentário vemos os danos causados por essa invisibilidade. Aí você pode me perguntar, “mas Tatiana, como você fala de invisibilidade em relação a um sujeito que é conhecido por ‘reger multidões’?” E eu explico.
ESSE FOI JUSTAMENTE O PROBLEMA.
Ele ousou se tornar visível... demais! Enquanto ele cantava sob a tutela dos brancos (que diga-se de passagem, tudo aconteceu! O país mudou, vivemos a esperança de um mundo novo, voltamos a loucura que já foi um dia, e essas pessoas continuam ali, na sua bolha, muito bem protegidas por elas mesmas numa solidariedade de manutenção de poder inigualável, e por uma história contada por elas pela ótica delas), estava tudo bem. Era o negro pitoresco, que dizia coisas que ninguém esperava, mas que todos achavam muito espirituoso.
Enquanto ele estava ali, mas, de alguma forma, em algum nível, representando o papel que se esperava dele dentro de um estereótipo criado para nos aprisionar, estava tudo bem. Mesmo que ele tivesse 3 mercedes e o “coitado” do Roberto Carlos tivesse apenas uma. Era abuso, mas ele não oferecia perigo. O problema foi quando ele ficou tão grande e tão ousado que começou a fugir do alcance do controle desses que o “descobriram”, que lhe abriram portas. E de um sistema racista, opressor, que naquele momento se apresentava de forma terrivelmente polarizada por uma direita militar e uma esquerda comunista, mas que não justifica o massacre efetuado sobre aquele homem negro. Sim, porque podemos ser incríveis, desde que estejamos “sob a tutela de", “agradecendo à", respeitando a ordem dos que “nos abriram portas”, mas que também lucraram muito conosco.
Como ousamos reger um coro de 30 mil pessoas quando shows de estádios ainda nem tinham sido criados??? Como ousamos montar uma produtora para cuidar de nossa carreira quando isso ainda nem havia sido pensado pelos artistas? Como ousamos criar uma mascote associado a nós dando o ponta pé na ideia de marketing pessoal que eles, os ideologicamente brancos, ainda não haviam criado? E isso sem levantar bandeira, sem fazer discurso direto.
Vivíamos um momento complicado de país e de mundo sim, mas para quem tinha que pular o muro para pegar a marmita posta ás escondidas ali pela mãe porque a patroa dela não queria empregadas com filho, ter bens materiais e viver num paraíso onde se pode morar numa casa de sonho, comer o que quiser e ter o que desejar, é tudo o que importa. E com razão. Quem conhece a fome sabe que essa afirmação é verdadeira. Mas quando um desprivilegiado chega num pódio tão alto é imediatamente exigido dele que:
1) não revide os mal tratos que sofreu - não só dê a outra face como lamba a mão de quem lhe bateu.
2) seja humilde - mas não humilde de discreto, mas uma humildade inumana.
3) perdoe - não importa o que tenha sofrido, perdoe acima de qualquer coisa e de forma incondicional.
A Anistia é ampla, geral e irrestrita. Mas isso só se aplica ao privilegiado em situação de “risco” como a apresentada acima, porque se foi o desprivilegiado que ofendeu, a esse, no mínimo, o ostracismo. Uma morte em vida e eterna. Dois pesos e duas medidas. Afinal de contas, como um negro ousa achar que pode ter e agir como um branco? Era assim e ainda é assim salvo as devidas proporções de momentos históricos.
Simonal ficou visível e precisava ser invisibilizado novamente em prol da ordem e da harmonia. A sua anistia só veio depois de sua morte. Mesmo este provando que nunca delatou ninguém (como estava sendo acusado). Não importa! Nem de longe a prova que conseguiu junto ao governo de quase vinte anos depois de sua morte em vida teve a mesma repercussão que a falsa acusação. Os mesmos integrantes da mídia que o acusaram sem piedade na época admitem a imprudência de seus atos (tentando eu aqui usar um termo mais cortês) mas, nitidamente, pelo menos para minha interpretação, não reconhecem que erraram, e feio! E colocam a responsabilidade maior na polaridade política daquele momento que exaltava ânimos e exagerava atitudes.
Isso se chama RACISMO! Não tem outra explicação. Não é porque Simonal era metido ou arrogante, ou gastador. É porque ele era PRETO. NEGRO. PONTO! Elis também foi associada a ditadura, que usava de tudo que fosse vitorioso e bem-sucedido principalmente nas artes e nos esportes, para fazer propaganda do “Brasil”. Porque o sistema tomou para si o significado de patriotismo. Ser brasileiro era ser a favor daquele sistema (qualquer semelhança com os dias atuais, infelizmente, não é mera coincidência). No entanto, para Elis houve não só o perdão como um acolhimento e uma corrida da classe artística (em sua maioria, branca) em provar que ela estava do lado dos mocinhos (em sua maioria, brancos). Quem saiu em defesa de Simonal? Me pergunto se os que hoje falam tão indignados e solidários a ele também falaram assim naquele momento. Extremamente provável que não visto o rumo da história que foi bem diferente de Elis. Onde eles estavam quando Simonal foi preso, ou diante do boicote sofrido por ele? Os negros e os brancos, onde estavam?
A invisibilidade do neguinho veio bem a calhar para o ressentimento, o ódio e o racismo disfarçado de muitos!
Hoje, para nós negros, resta lotar os cinemas para assistir a história que mais uma vez nos foi negada. Não a história do traidor (que nunca existiu! É fundamental lembrar), mas a história do homem negro, que com seu talento foi empreendedor, visionário, vitorioso. O negro que numa época inimaginável regeu multidões. Eu só sou porque ele, como tantos antes de mim, ousou ser. Que seja sempre visível a sua glória. Eu vejo você, Simonal!
Tatiana Tiburcio
Instagram @tati_tiburcio
Siga no instagarm @coletivo_indra