Coletivo Indra

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Falar é preciso

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Ainda pensando sobre silenciamento e racismo, essa semana me deparei com um post no Instagram falando sobre uma reportagem na revista Marie Claire elogiando, exaltando um time de mulheres que ocupam cargos de poder dentro da Rede Globo de televisão. Roteiristas, diretoras, autoras, enfim, todas elas mulheres brancas. Se ninguém tivesse falado nada teria passado batido, tido como normal, só mais uma reportagem. Só que não! Diversos grupos e formadores de opinião, negros e aliados, se manifestaram de forma organizada e individual sobre a reportagem. Até aí, nada de novo: o racismo estrutural normatizando a nossa invisibilidade e nós nos posicionando, questionando e lutando para que as mudanças de paradigmas aconteçam. Mas ao que precisamos nos ater é ao que acontecem nas entrelinhas desse embate, porque é aí que mora o perigo da perpetuação de ideias excludentes de forma tão eficaz.

Em um dos posts que criticava a reportagem e mencionava a normalização da invisibilidade negra, li um comentário que me chamou a atenção. A mensagem se baseava em meritocracia e união. Basicamente, a pessoa rebatia o questionamento do post dizendo que conhecia uma das diretoras mencionadas, que era uma batalhadora, que “ralou” muito para chegar onde chegou e que se todo mundo se esforçar, independentemente de cor, consegue vencer (meritocracia). Depois, essa pessoa mencionou que o comentário do post era segregacionista. Que sim, tudo o que o povo negro passou “Foi triste, sim. Mas passou” e que se apegar ao passado só alimenta a desunião entre a humanidade e que devemos “transmutar (...) construir um presente de harmonia e paz. ” (União).

Não vou me ater por muito tempo explicando que o que esta em questionamento aqui nem de longe se trata da capacidade, luta, esforço da pessoa A, B, ou C. Quando se trata de questão racial, não falamos a partir do indivíduo, mas pela ótica do coletivo. É uma questão social não individual. Portanto, nada contra as mulheres mencionadas na reportagem, mas sim a estrutura que privilegia esse padrão de indivíduo.

DESENHANDO PARA ENTENDER

Primeiro, é inadmissível discutirmos a questão racial ainda hoje no país a partir da ótica da meritocracia.

Esse princípio só pode ser considerado válido em uma sociedade onde as diferenças sociais não sejam tão discrepantes quanto a nossa. Essa discrepância se dá muito por conta da formação da nossa sociedade baseada principalmente numa estrutura de exploração de corpos negros e indígenas. Essa exploração trouxe para esses povos a peja da exclusão, da negação, da marginalização de sua cultura, estética, de seus hábitos que desencadeia na ratificação de estereótipos que impossibilitam muito a ascensão social dessa população. Essa dificuldade de ascensão impede que essas pessoas sejam vistas com frequência em posições de destaque e sucesso na sociedade, dessa maneira se tornam invisíveis nesse meio.

Essa invisibilidade é normatizada, e aceita como normal, porque ratificada pelas propagandas, novelas, filmes, séries, revistas e etc., portanto, como falar em meritocracia quando as oportunidades não são iguais? Pegar um exemplo vitorioso entre a população negra e dizer que se ele ou ela conseguiu qualquer um consegue é jogar no colo do oprimido a responsabilidade sobre as consequências da opressão. Além de dificultar a ascensão desse sujeito ainda o culpabiliza por isso. Se vivêssemos na Suíça estava bem, mas no Brasil, a história literalmente é outra.

Se duas amigas, uma negra e uma branca, moradoras de uma comunidade da cidade do Rio de janeiro, cujo os pais tem os mesmos empregos e condição social, que estudam na mesma escola pública na comunidade, descem o morro para pleitear a vaga de gerente de uma loja num shopping da zona sul, é certo que a menina branca vai conseguir a vaga de gerente e a negra no máximo de vendedora ou – o que é mais provável – de auxiliar de qualquer coisa longe da vista do público. E aqui eu não falo das exceções, falo das regras. 

Como gerente, a menina branca vai ganhar mais e consequentemente vai ter mais possibilidade de ascensão econômica o que se refletirá na sua descendência. No caso da menina negra, ganhando menos, também se refletirá na sua descendência alimentando o abismo social e mantendo essa família no status mais baixo pelo menos por mais tempo. Ou seja, a questão racial influencia diretamente nas oportunidades das pessoas negras dificultando, limitando e por vezes impedindo o seu crescimento. O sujeito negro tem que fazer um esforço infinitamente maior que o não negro para sair do patamar para ele previamente estabelecido. É justo, ou melhor, é possível então falar de mérito quando as regras são tão desiguais? Ou usar esse argumento é uma forma cruel de silenciar a fala daquele que diz não? 

Outra forma de silenciar o nosso discurso é apelar, consciente ou não, para a ideia de união. De humanidade. Dizer que o questionamento do povo preto sobre as formas de opressão diretas ou indiretas alimentam a desunião é também uma forma de silenciar o discurso e culpar o povo preto pelo racismo que ele mesmo sofre.

Quando ouvimos que desde 2005 foi instituído pela Assembleia Geral das Nações Unidas o dia 26 de janeiro como o dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto Judeu, não ouvimos falar “enquanto a gente fortalecer o passado, essa roda de samsara não vai passar. Foi triste o que aconteceu, foi (...) vamos transmutar”. Não! O mundo se comove em reverência. Soa quase como uma heresia falar algo assim sobre esse holocausto. O povo judeu não deixa (com toda razão) o mundo esquecer o que fizeram com eles e são louvados por isso. Mas quando falamos do nosso holocausto que nas devidas proporções continua até hoje, visto que 73% dos jovens assassinados no Brasil são negros, somos taxados de “mimizeiros” ou de propagar a desunião. Isso sim é desumano!

Em um período de 4 anos (1941 a maio de 1945) foram assassinados aproximadamente 6 milhões de judeus nos campos de concentração. Em um período de aproximadamente 338 anos que durou a escravidão só no Brasil, você consegue mensurar quantos foram os mortos? Acredito que 6 milhões não chega nem perto, não acha? 

Nenhuma vida vale mais que a outra, mas o racismo faz uma realidade de dor ser mais considerada que outra. E quando nós falamos sobre o que nos aflige estamos alimentando a desunião? 

São nessas entrelinhas que se perpetuam uma mentalidade racista, não na reflexão, no questionamento e no apontamento dos equívocos. Fica a dica.

Tati Tiburcio

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