Coletivo Indra

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Isolamento horizontal

Imagem: Woman with Eyes Closed, 2002 - Lucian Freud.

Um autor está sempre localizado em algum lugar do tempo e do espaço, o que se reflete em sua obra, por mais que não o queira. Por esse motivo, é perigoso julgá-lo por aquilo que deixou de dizer em seu tempo, ou por ter dito algo que contraria as concepções de outra época. Mas não é essa conversa que quero ter com você. Digo isso só porque gostaria de poder me colocar fora desse nosso tempo e espaço de agora, onde o colapso é certo e a efemeridade da vida é escancarada. 

Porque tudo o que era antes óbvio perde o sentido, e outras coisas ganham uma importância que jamais lhes foi atribuída. Você percebe? Ainda vale a pena correr? Será que é seguro sair daqui? O que eu enxergo além dessa janela? Essa parece ser a primeira vez que olho para essa sua fotografia, e vejo os detalhes na sua blusa. Vejo sua covinha por causa do seu sorriso acanhado. Será que direi que te amo mais uma vez?

E o que resta de importante, pelo menos para mim, é tentar buscar maneiras de contornar a essa tragédia, que é nossa, antes que ela nos consuma. E não falo da doença que recaiu sobre a humanidade. Sobre essa há muitos discutindo melhor o que fazer, ou dando exemplos do que não fazer. Você sabe bem. Mas falo do que ela escancara em nós e naqueles que habitam esse mesmo tempo e espaço. O estar só no mundo e a nossa fragilidade. Desculpa estar te amolando com isso, mas é que não consigo ser diferente. 

Tenho para mim que a recusa de alguns, consciente ou não, em enxergar que são apenas seres frágeis e sozinhos, o que vem junto com a ilusão que eles têm de si próprios, faz com que o pior deles seja escancarado nessas horas. Só pode ser isso que leva alguém a preferir o dinheiro sobre a vida. Outros, eu percebo que procuram partir para o exílio dentro de si para enfrentar esse momento. Mas não é possível ficar indiferente.

E é por isso que eu gostaria de poder conversar fora desse tempo e desse lugar, porque eu também não consigo ficar impassível. Você sempre disse o quanto eu sou sensível. Eu queria que você me chamasse pra conversar sobre outras coisas, sobre aquele livro que você disse que ia me emprestar ou a sobre banda do seu amigo que você ouviu. Por mais que eu sei que a gente iria acabar falando disso tudo de novo, principalmente se fossemos abrir aquele vinho que eu te levei uma vez e começássemos a filosofar. Mas nem isso mais dá pra fazer. 

Não te dá a impressão de que tá todo mundo cansado? Parece que tá todo mundo empoeirado, mas que ninguém tem mais vontade de se limpar. Como se a sujeira dos prédios tivesse impregnado em nós todos. Não te dá essa impressão? Tá todo mundo com medo, isso é certo, e daí eu não sei o quanto desses sorrisos ainda são sinceros, ou quantas lágrimas eles estão segurando. Tenho pra mim, mas isso assumo só pra você, que muita gente precisa aparecer e ser vista, apenas pra fugir do medo de ser esquecida e de ter que olhar para si própria. Desculpa. Eu entendo que julgo demais. 

Eu já sei que é impossível fugir do presente e que, pelo contrário, é somente enfrentando ele com presença que poderemos observar algo até então desconhecido, para nós e para os outros, e que assim conseguiremos ser mais fortes. Não precisa repetir e querer me ensinar de novo. Mas ele é tão dolorido, e é tão difícil aguentar. Você podia me deixar com minhas ilusões mais um pouquinho. Eu ainda não tenho essa sua maturidade. 

Mas eu realmente acho que a vida é bonita mesmo assim, mesmo que a gente seja feito pra acabar. E só de te ver por essa tela parece ser a prova disso, mesmo que a minha mão não possa encontrar com a tua. Mas é assim que dá pra ser. Agora. E já vale a pena. Eu sei que isso tudo já era esperado e também possível, mas era tão mais fácil ignorar, como quem faz agora, procurando uma explicação do porquê de sermos nós. Estou julgando de novo, tá bom. Mas é que antes você bem sabe que eu julguei a mim, que eu disfarço dizendo que é porque conheço minha fragilidade. E que eu devia ser mais do que eu sou e do que eu consigo ser. 

E no fim, a gente só consegue ser isso mesmo. Uns lá, outros cá. Uns na rua, outros em casa. Todos com medo, empoeirados, frágeis e sozinhos. É, mas nós só somos sozinhos nessa casca, nesse instante. Bem lembrado. Depois ninguém sabe mais o que é ou como é, nem pra onde volta, ou pra onde vai. Enquanto a gente fica sozinho, a gente vai se descobrindo, né? Mas também vai se duvidando cada vez mais, procurando uma esperança pra se agarrar aqui ou ali. 

Eu sei que isso não vai durar pra sempre, e daqui a pouco eu vou estar sofrendo de novo, quando você já tiver desligado a câmera. Mas é por isso mesmo também que vai passar, e nós vamos nos reencontrar, e vamos sair sem ter hora pra voltar e terminar naquela balada lotada, sem nem saber porque fomos parar lá. E a gente vai cantar junto Ai, que vida boa, olerê. Ai, que vida boa, olará. E eu vou achar que tudo tinha que ser assim mesmo. Mais uma vez. E eu vou te abraçar forte de novo. 

Eu queria tanto que essa sua lucidez me iluminasse o tempo todo, e que eu pudesse ser assim como você é, que já superou o medo e a angústia, depois que encontrou o seu caminho e seguiu por ele. Eu mal consigo dar dois passos que tropeço de novo. E me distraio com qualquer barulho que vem de fora, e me deixo levar por qualquer curiosidade besta. Eu queria tanto te encontrar aí, para além dessa tela que me dá uma ilusão sua (mas ainda bem que ela existe). Queria tanto me esbaldar nessa sua confiança, nesse coração sincero. Mas por enquanto só de longe.

Então ficamos assim. Amanhã você me chama de novo, e liga a câmera. Porque a gente vai poder se ver de novo e não se sentir tão sozinhos nessa coisa toda. E daí eu posso pensar que nós não somos tão frágeis quando estamos juntos. E que na verdade nós somos uma coisa só. E que a gente pode vencê-los, apenas por um dia. Ou para todo o sempre. 

(Oh-oh-oh-ohh, oh-oh-oh-ohh, just for one day...)

Arthur Spada

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