Coletivo Indra

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Álbum de memórias cotidianas

Semana passada encontrei uma antiga colega de escola. Não nos falamos. Somente eu a vi e não senti necessidade de falar com ela sem ela ter me visto. Falar por falar, melhor o silêncio. 

Esse acaso unilateral me fez lembrar um episódio que aconteceu com ela na sala de aula e que nunca mais esqueci. O bullying que na época convivíamos, mas desconhecíamos. Onipresente:

“Faça um favor pra todo mundo e se jogue pela janela”.   

As palavras não foram exatamente essas, mas diante da desumana intenção elas pouco importam. Não sei o efeito que essa frase causaria hoje. Fiquei feliz ao ver que os anos passaram e ela não se rendeu ao desejo sádico do opressor. Dele nunca tive notícias, nem o desprazer de um reencontro. 

Esse enlace cotidiano que poderia ser cena de uma novela escrita pela conterrânea Manuela Dias, visto o ovo de codorna que é a cidade de Salvador, me fez confabular sobre os registros que ficam na nossa memória com o passar do tempo. De uma forma inexplicável, esse organograma de lembranças independe da nossa vontade, do nosso apreço pelas pessoas envolvidas. 

Certo que quando queremos conseguimos arquivar um acontecimento non grato. Eu, por exemplo, trabalhei numa empresa cuja experiência foi tão desagradável e tóxica, que as vezes me questiono se realmente esse período existiu. Ainda assim, ninguém consegue ter o domínio do que a mente fixa como ato permanente, seja num deja-vú ou num gatilho do dia a dia como o descrito no início desse texto. 

A memória é um álbum do qual somos os donos, mas as figurinhas a gente só descobre quando abrimos os pacotes. E isso me lembrou o filme “Eu me lembro” do cineasta baiano Edgard Navarro, uma lembrança de 6 anos atrás. As memórias afetivas que aconchegam são as mesmas que enclausuram e atormentam, pelo que se viveu e não se pode reviver ou mudar. 

Eu me lembro (sem lembrar o rosto) do meu avô paterno com quem pouco convivi, deitado na maca ao chão, enfermo; eu me lembro da parte de um corpo preterido que foi se fechando, depois se abriu, e que sempre foi meu; eu me lembro da vez que enfiei o pé no raio da bicicleta; eu me lembro de quando assumi uma culpa pra me livrar de outra; eu me lembro de quando cedi para não perder o que sequer existia; eu me lembro do dia que vi o sol nascer e a aurora se transformar em luto; eu me lembro da mordida na acerola tirada do pé enquanto eu apenas esperava; eu me lembro de um conto de fadas proibido que parece ter inventado a quatro mãos; eu me lembro do primeiro encontro onde tudo se desencontra; eu me lembro da minha avó paterna cantando margarida chorona imobilizada numa cadeira; eu me lembro... E você?  

Não sei se já fiz essa anedota sobre memória em algum dos meus textos anteriores. Na verdade, assumo, não lembro. Tenho me relacionado tanto com ela que lembrar, esquecer, inventar são verbos que me ajudam a entendê-la. A memória é fardo e leveza, corpo e história, fim e começo.        

“A bebida atiça minha memória, privilégio que poucos humanos têm, memória de tudo que é nada, um nada que acabrunha meus sentidos e sustenta a pulsação neurótica do meu aparelho interno que bumba o vazio. Já pensei sobre o barulho do nada e creio ser o barulho do coração, mesmo que ele nada tenha dito e nada venha a me dizer em vida. Qual é o barulho do nada? Prove-me que o coração não é um vazio humano que engana os homens quando pensam em amor”. Fernanda Young, “posso pedir perdão, só não posso deixar de pecar”.      

Felipe Ferreira

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