Luto por João Pedro
Em memória de João Pedro Mattos Pinto e para todos seus familiares e pessoas amigas, registro meus sentimentos e desejo de reparação política.
Em 19 de Maio de 2020, o corpo de João Pedro Mattos Pinto, um jovem negro de 14 anos foi encontrado no Instituto Médico Legal (IML) do Rio de Janeiro.
No dia 18 de Maio, João Pedro morreu durante uma operação da Polícia Civil e da Polícia Federal no Complexo do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro. Na ocasião, familiares e amigos relataram que João Pedro brincava na casa de um tio, quando policiais invadiram o imóvel atirando, o garoto foi atingindo na barriga. A Polícia Civil alegou que João Pedro foi ferido durante uma troca de tiros com traficantes.
Não estamos aqui para comentar essa ação policial especificamente, não estamos aqui para afirmar somente que diversos especialistas em segurança pública têm proposto que as ações policiais ostensivas não devem colocar a população em risco de morte. Óbvio que em busca de traficantes em bairros de classes média alta e alta (tais como Leblon, Ipanema e Lagoa no Rio de Janeiro), as polícias Civil, Militar e Federal não chegam atirando.
A imprensa notícia chegadas com mandando de busca e apreensão, documentos que autorizam prisões e todos os papéis em ordem. Alguém pode contra-argumentar que nas favelas cariocas, os traficantes andam armados e revidam com tiros. Vale lembrar que em bairros da zona sul carioca, a maioria é branca.
O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirma que nas favelas cariocas, a população é de maioria negra. O filósofo camaronês Achille Mbembe faz uma análise de que no contexto do capitalismo neoliberal existe um fenômeno denominado de necropolítica, isto é, uma tecnologia política impetrada pelo Estado que funciona eliminando o inimigo interno.
A necropolítica estabelece locais com densidade populacional negra como território livre para incursões de violência “legítima”.
Necropolítica não é uma exceção, um acontecimento fortuito; mas, uma política, uma regra assentada no racismo estrutural para matar. Os dados de estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) confirmam um aumento significativo do assassinato de jovens negros do sexo masculino, os resultados publicados no Atlas da Violência em 2019 confirmam que mesmo com a queda de homicídios em números absolutos, a morte de jovens negros aumentou 7,2%.
O racismo estrutural tem inúmeras formas de atuação, não podemos ter ingenuidade de que estamos diante de coincidência. Nenhum debate sério e qualificado pode ser feito com base em falta de informação e sem as devidas ferramentas intelectuais e uma dimensão político-analítica.
Por que João Pedro morreu?
O que a guerra contra o tráfico ganha matando jovens como João Pedro? É preciso que o Governador Wilson Witzel reveja a sua política de segurança pública. É preciso que o presidente Jair Bolsonaro informe a população qual é a política de segurança pública em parceira com os Estados que pretende evitar que essa situação se repita. Presidente e governador precisam manter um diálogo com a população a esse respeito. Não é muito pedir que Polícia Federal e Polícia Civil, envolvidas no caso, façam mais do que uma nota com pedidos de desculpas pela morte de um menino.
Afinal, os fatos saltam aos olhos, desde o Governo Moreira Franco iniciado em 1987, as mortes de pessoas que não estavam em situações de confronto armado com forças policiais tem aumentado significativamente. Leonel Brizola governou o Rio de Janeiro, pela primeira vez de março de 1983 a março de 1987, recusando a política de segurança de confronto, Abdias do Nascimento (ativista histórico do movimento negro) era um de seus mais ativos conselheiros.
Não podemos tratar de segurança pública sem falar de racismo.
Os críticos aos governos de Leonel Brizola podem dizer, “Brizola deixou a bandidagem crescer”. Ledo engano. Independente de filiação partidária, os dados confirmam que o governo Brizola tinha uma agenda antirracista, o que inclui inevitavelmente impedir que policiais sejam usados como os únicos agentes de segurança pública, responsabilizando-os pelo que dá errado e, eventualmente, batendo palmas para ações bem sucedidas. Não podemos insistir em culpar indivíduos, essas ações têm que ser vistas politicamente. Ledo engano quem pensa que queremos responsabilizar um ou dois policiais pela morte de João Pedro, o caso é político!
A responsabilidade está na política de segurança, na adoção institucional da deliberada da necropolítica. A partir de dados de estudos sobre segurança pública do Ipeae do FBSP identificamos que mais pessoas negras são mortas nos confrontos. No ano de 2017, ouvi relato de uma pessoa que presenciou um agente de segurança pública paulista alertar um grupo de descendentes de japoneses que brincavam de polícia e ladrão com réplicas de armas no bairro da Liberdade na cidade de São Paulo, o policial disse que a brincadeira era perigosa e foi conversar com os jovens. Imaginem se fossem jovens negros brincando com réplicas de armas?
No ano de 2019, nós tivemos dezenas de assassinatos que foram noticiados e chocaram, tais como: Kauã Vítor Nunes Rozário, 11 anos; Ághata, Kauê dos Santos, 12anos; Gabirel Pereira Alves, 18 anos; Lucas Monteiro dos Santos Costa, 21 anos; Tiago Freitas, 21 anos; Henrico de Jesus Viégas de Menezes Júnior, 19 anos; Margareth Teixeira, 17 anos. O que têm em comum, tal como IBGE denomina eram crianças e jovens de cor/raça parda e preta. O que politicamente significa eram pessoas negras, porque a soma de pessoas pretas e pardas é o quantitativo da população negra brasileira.
Dito isso, precisamos entender João Pedro como mais uma vítima. Um jovem negro morto, uma pessoa que não está mais presente. Algumas pessoas podem dizer que sempre aprendemos algo com uma tragédia. Pois bem, tragédias não são ferramentas pedagógicas. Não precisamos de desastres para encontrar soluções antirracistas. Nós precisamos rechaçar a ideia de que só aprendemos algo brilhante e profundo depois de um grande sofrimento. Não, definitivamente não!
Do contrário, quantas pessoas negras precisam morrer até o Estado aprender que segurança pública não se faz com fantasias emocionais?
Não é através de homens, em estado emocional alterado, se vestindo de heróis que faremos uma batalha entre do “Bem” contra o “Mal” para acabar com o crime na cidade. Policiais não são heróis e nem vilões, são seres humanos; policiais são trabalhadores. É preciso dá um basta nessa dicotomia.
A política de segurança que organiza as atividades policiais não pode ser um roteiro de filme de ação em que pessoas negras são as vilãs. João Pedro não era vilão. Nós também não queremos soluções fáceis, transformar o agente policial em vilão. Nós não queremos mais moradores das favelas mortos em confronto, também queremos a segurança dos trabalhadores da segurança pública. Polícia só pode funcionar através de protocolos investigativos e o confronto ostensivo não deve ser uma prática. Enquanto sociedade, nós temos o dever de garantir que jovens negros não sejam mortos.
A morte de João Pedro só confirma que a política de segurança pública precisa ser imediatamente revista. A Polícia Civil deve fazer uma investigação rigorosa; a Polícia Federal deve relatar a natureza da parceria com a Polícia Civil do Rio de Janeiro. Não estamos interessados em quebra de sigilo; mas, elucidações, um jovem foi morto. Os governos Federal e do Estado do Rio de Janeiro devem modificar radicalmente a necropolítica que tem vitimado a juventude negra e periférica da população brasileira.
João Pedro não pode ser esquecido, não é o primeiro caso e, infelizmente, tememos que não seja o último.
João Pedro não está presente fisicamente; mas, deve ser lembrado sempre. A sua memória nos dá um dever, combater (por todos os meios legais e democráticos) a necropolítica do Estado do Rio de Janeiro e de todo o Brasil. É hora de mobilização para modificar a política de segurança! Luto por João Pedro. Em tempos de pandemia e diante da morte de João Pedro, é nosso dever um ato (virtual) pela vida.
Renato Noguera
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