Coletivo Indra

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M8 - Quando a Morte Socorre a Vida.

Por algum problema de ordem técnica (da Netflix, da internet ou da TV), assisti a primeira cena de “8M - Quando a Morte Socorre a Vida” sem áudio. De início, achei que fosse um recurso narrativo intencional usado pela direção. Só quando as bocas mexeram e a mudez persistiu, voltei a fita e o som se fez presente. Antes disso, quando divulgaram o primeiro trailer da produção, o que vi tinha me deixado emudecido.

 Quantas vezes optamos pelo caminho mais curto do silêncio?

Quantas vezes silenciamos diante de uma violência, uma injustiça?

 O filme de Jeferson De reverbera essas e outras questões entranhadas na espinha dorsal da sociedade brasileira, que mesmo quando não enxergadas e sentidas (por displicência ególatra ou por descaso social) continuam sendo responsabilidade de todes. Afinal, somos parte onipresente do sistema racista que as institucionalizam.

O modus operandi da exclusão social se alicerça numa prática violenta onde a cor da pele e a classe social definem quem mata e quem morre. E esse processo histórico de silenciamento e genocídio da população negra se escamoteia no discurso oco da democracia racial e na banalização da morte desse corpo periférico, dissidente e vez ou outra, indigente.

 M8, a identificação do cadáver que dá título ao filme, é uma representação profunda de um Estado que vê nesse desumano descarte humano a solução para seus problemas mais crônicos. M8 (Raphael Logam)carrega na sua indigência, na sua invisibilidade, os milhares de corpos negros que são mortos todos os anos, todos os dias, todas as horas. E esse mesmo corpo que estampa as páginas dos jornais e recheia as longínquas horas dos programas policiais na TV, é o mesmo que os laboratórios das universidades de medicina utilizam nas aulas práticas dos futuros médicos brancos.

“O jaleco da meritocracia”

“MORTE e vida severina”

“ Vida e MORTE servil”

 Os três espaços comungam da mesma cegueira. As pessoas veem, mas não enxergam além-espetáculo. A indiferença que faz M8 ser apenas estatística não se estende à estranheza que estudantes e professores sentem ao ver um jovem negro de jaleco branco entre eles. Cabe ao próprio Maurício romper esse distanciamento ao se reconhecer nas marcas e na história daquele corpo que poderia ser o seu.

 A naturalização do corpo negro se moldou numa via crucis que vem desde o período da escravidão. Um corpo forte, sem alma, resistente ao trabalho braçal, objetificado, sexualizado e violentado ao bel prazer da branquitude que muda de século, mas reluta em mudar o pensamento. O racismo que cerceia espaços, restringe lugares e silencia vozes, também reproduz algozes a imagem e semelhança dos oprimidos. O policial negro que humilha e abusa do poder, o segurança negro que se reflete no indivíduo sob suspeita que entra na loja, são exemplos das feridas sociais que o racismo estrutural expõe diariamente.

 Tão potente e necessário quanto os debates suscitados pelo filme é ver um elenco marjoritariamente negro (do protagonista aos coadjuvantes) distribuindo talento e representatividade. Juan Paiva defendendo o protagonista Maurício aliando força e consciência cênica com o carisma natural de um jovem ator, e o elenco feminino composto por atrizes da grandeza de Mariana Nunes, Zezé Motta, Tati Tibúrcio, Ju Colombo e Léa Garcia é um oásis diante da repetição de elencos determinados por padrões eurocêntricos e um cala-boca em diretores, autores e produtores que insistem em defender suas escolhas no argumento frouxo da falta de profissionais negros no mercado.  

Mais do que dissecar as relações humanas intra e extracurriculares, M8 - Quando a Morte Socorre a Vida é uma aula de anatomia histórica da sociedade brasileira em todas as suas entranhas. Desorganizada pela cultura meritocrática dos privilégios e atrofiada por não conhecer e negar as raízes da sua ancestralidade.

Felipe Ferreira

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