Masculinidade em xeque
Se na era de ouro da MTV a gente corria pra não perder o horário do Disk e tinha que torcer pra ter nossas músicas favoritas disponíveis no 4shared para download e atualização da playlist do mp3, hoje, um artista lança um álbum e em 10 minutos muita gente já ouviu, já compartilhou nos stories e metade do twitter já sentenciou sua opinião a respeito.
A velocidade do acesso acompanha a velocidade da opinião. É bom! É ruim! É plágio! É superficial! É a efemeridade do tudo e do nada com requintes de predileções pessoais e absolutas de “eu esperava mais”, “não é o trabalho que ela/ele deveria fazer para ser mais reconhecida/o, pra ter mais sucesso e alçar voos maiores”.
A gente parece não ter mais paciência para simplesmente apreciar o single, o álbum, o clipe lançado. Criamos o hábito e cultivamos a necessidade de escutar o quanto antes para postarmos nossa opinião à queima roupa. Sobre-tudo aquela velha opinião. Ter nosso próprio parecer em meio à avalanche de críticas parece ser mais importante do que a experiência com a obra em si.
Fomos surpreendidos (mais uma vez) pelo retorno de Tiago Iorc aos holofotes da cena musical depois de (mais um) período de recolhimento pessoal, artístico, criativo.
Fiquei surpreso com a divisão de opiniões. De um lado, comentários elogiosos, falando bem da letra, da coragem dele em expor suas vulnerabilidades e de colocar em xeque a masculinidade que todo homem é obrigado a vestir desde o momento que nasce.
Do outro, comentários jocosos, ironizando a abordagem do tema, reduzindo o debate a atos estéticos como pintar a unha, usar roupas agênero e afins.
Determinar o caminho artístico do outro tendo nossa subjetividade como régua balizadora é uma práxis que o público ávido por ver a expectativa que ele cria ser atendido passou a aplicar com cada vez mais frequência.
Ou a gente curte, gosta e consome ou simplesmente deixamos pra lá e pulamos a faixa. Não vejo sentido em invalidar o trabalho de uma pessoa sob um olhar depreciativo, superficial e, consequentemente, invalidar as discussões e reflexões que ele suscita.
Sabemos que para quebrar preconceitos e estereótipos é necessário um posicionamento prático que se fortalece diariamente, no cotidiano das ações.
“Em tempos de slogans vazios e discursos desacompanhados de práticas concretas”.
A aspas excelente da matéria de capa sobre a Grace Passô escrita pela Soraya Martins e pela Tatiana Carvalho, na edição de outubro do Suplemento Pernambuco, sintetiza muito bem isso. É enorme a quantidade de surfistas militantes sazonais, assim como é natural olharmos cada palavra lançada, cada imagem projetada, cada conceito proposto por uma lupa mais minuciosa e exigente.
A crítica - quando bem construída e argumentada - é importante e contribui historicamente na alvenaria e na qualidade da produção artística, independente de qual área seja. Mais vale uma crítica honesta do que uma avalanche de adjetivos vazios.
Como grande apreciador da letra e da vastidão da nossa língua portuguesa, entre jogos de palavras, fonemas e sons gostei bastante da música e do seu poder visual poético de nos colocar diante da nossa própria trajetória de masculinidade ontem e agora.
Se em mim a canção provocou tal efeito acho um trabalho válido e relevante que o Tiago propõe a ele mesmo e a nós homens, unidos por uma mesma régua adestradora de masculinidade que tenta nos moldar, nos definir. Se a música de alguma forma desperta reflexão ou autocrítica em quem a escuta - tretas do artista e tribunal da internet a parte - acho que já vale a sua existência e o fuzuê causado.
Felipe Ferreira
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