“Meu melhor amigo” e as perguntas que ninguém me ajudou a responder.
Educação Sentimental é um álbum da banda Kid Abelha lançado em 1985. Eu nem sonhava nascer. Hoje, 35 anos depois e comigo a beira dos trinta, a música homônima é onipresente na minha playlist. Ao escutá-la é inevitável não me sentir naquela voz desnorteada, cheia de perguntas e ávida por respostas. O roteiro normativo da letra composta por Leoni, Paula Toller e Herbert Vianna, faz a gente questionar a forma como encaramos a vida e como lidamos com a dicotomia nem sempre harmônica entre expectativa e desejo. Sim, por que quase sempre o que esperam de nós não é o que realmente queremos.
O “manual prático da vida adulta” presente na canção reúne todos os itens indispensáveis para a felicidade. Estudo, trabalho, dinheiro, amor, casamento (que não necessariamente está atrelado ao item anterior) e filhos (que não necessariamente é um querer genuíno do casal) se sucedem na linha do tempo da vida para atender uma demanda que se revela mais alheia do que nossa. E essa ilha de incertezas me fez criar uma ponte entre a música e o filme argentino “Mi mejor amigo” (Meu melhor amigo) que eu havia assistido dias antes.
O drama romântico escrito e dirigido por Martín Deus nos apresenta Lorenzo (Angelo Mutti Spinetta), um adolescente cheio de dúvidas sobre seus próprios sentimentos após a chegada de Caíto (Lautaro Rodríguez), filho de um amigo dos seus pais. A estadia provisória do jovem problemático além de criar um improvável elo entre eles, desloca o sensível e disciplinado Lorenzo para uma zona conflitante de sentimentos antes inabitada, onde ele tenta compreender as frequências das suas emoções e do sentimento do novo amigo.
O encontro e a cumplicidade entre as águas calmas de um e o mar revolto do outro me fez voltar no tempo e reencontrar um Felipe imerso em perguntas e que não tinha (ou não sabia que tinha) ninguém para perguntar. Não as respostas propriamente ditas, mas o caminho para se chegar até elas. De lá até aqui tive melhores amigos que não eram amigos, amigos que não eram os melhores e uns que não eram nem uma coisa nem outra. Faz parte!
A vida que me ensinaram como uma vida normal
Tinha trabalho, dinheiro, família, filhos e tal
Era tudo tão perfeito se tudo fosse só isso
Mas isso é menos do que tudo
É menos do que eu preciso
Agora você vai embora
E eu não sei o que fazer
Ninguém me explicou na escola
Ninguém vai me responder
No meu primeiro emprego tive um colega de trabalho que me despertou encantamento. Na época, não entendi o que era, porque surgira, muito menos o que significava. Ele foi meu treinador e anfitrião na empresa. Executaríamos a mesma função e dividiríamos a mesa sala. Com o caminhar da rotina administrativa conversamos sobre coisas variadas, almoçamos juntos, jogamos videogame no restinho do intervalo do almoço e passei a nutrir um carinho, uma admiração por sua gentil e agradável pessoa. Ele era surfista e minha imaginação tratou logo de incluir uma música na trilha sonora desse sentimento forasteiro. Menino do Rio na inconfundível voz de Baby do Brasil.
Cantarolava a música toda vez que o via e o imaginava. Por muito tempo convivi com aquilo sozinho. Parei de procurar explicações pra não surtar no enorme leque de possibilidades e no que aquilo poderia me revelar. Só anos depois, com a maturidade e a consciência de quem eu sou, percebi o que era aquele sentimento inédito que me acompanhava e me fazia recusar os convites dele pra ir a praia, pra jogar vôlei e vê-lo surfar. Um melhor amigo que passou e me ajudou a saber a diferença entre rio e amar.
A cena da conversa entre Lorenzo e sua mãe Camila (Mariana Anghileri) representa os muitos confrontos familiares da vida e simboliza, na relação mãe-filho, o encontro de sentimentos que permeia o amadurecimento desse convívio. A resistência inicial dele diante a tentativa da mãe de criar uma escuta afetiva e sem julgamento é reflexo natural de uma estrutura familiar de muita hierarquia e pouca troca. No fundo, elas acabam sabendo até primeiro do que nós mesmos, enquanto nos refugiamos no casulo das nossas solidões por não enxergarmos a normalidade ensinada desde a primeira infância.
Às vezes por mais moderna e sem preconceitos que uma família seja ou se auto intitule, a falta de diálogo impede que assuntos vistos ainda sob a lente distorcida do tabu sejam abordados. O ambiente familiar que deveria ser um lugar de acolhimento e informação se ressignifica num ambiente hostil de medo e silêncio.
Assim como o título de “Tal Vez”, uma das canções da excelente trilha sonora do filme assinada por Mariano Barrella, a graça da vida seja realmente não chegarmos até as respostas de cada questionamento, mas sim, a sensação e consciência da importância de cada luz no nosso caminho ainda que ela seja cadente e efêmera na sua existência.
Felipe Ferreira
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