Coletivo Indra

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Morte & Vida: Um Sentir sem Sentido

o dia da morte do Caio Junqueira (23 de janeiro de 2019) li uma postagem do ator Kiko Pissolato revelando que no processo de escalação de elenco do filme “Tropa de Elite” (2007) ele passou uma semana num laboratório ao lado do Caio e do ator Gustavo Falcão para a partir daí ser definido quem daria vida ao Capitão Neto.

O personagem acabou ficando com o Caio e “não tive dúvida que havia sido feita a melhor escolha para o papel”, palavras do próprio Kiko.

No elenco da realidade não temos o poder de escolher ou preterir. Quem vem e quem vai faz parte da arte misteriosa de uma narrativa em total sincronia com a ordem do universo e com as fendas que o constituem.  

Quando adolescente eu escalava o elenco das novelas que ganhavam forma na minha fértil imaginação. Além de criar histórias, dar título a obra, nome e sobrenome aos personagens, eu tomava pra mim o papel de diretor e escolhia a dedo as atrizes e os atores que dariam vida aquele rascunho folhetinesco que fervilhava no frescor dos meus desvarios infantis.   

No elenco do meu devaneio onírico hoje debutam: Andreia Horta, Renato Livera, Gustavo Machado, Paloma Duarte, Milhem Cortaz, Thaís Muller, Adriana Garambone, Marjorie Estiano, Julio Andrade, Day Mesquita, Lucinha Lins, Irene Ravache, Jussara Freire, Simone Spoladore, Gabrielle Lopez, Lidi Lisboa, Guilherme Dellorto, Allan Souza Lima, Lucélia Santos, Selma Ergrei, Cyria Coentro, Petrônio Gontijo, Juliana Schalch, Zezé Motta e a Gaby Haviaras (idealizadora do nirvana poético que é esse blog).

Outros, infelizmente, não puderam esperar. Regina Maria Dourado foi uma delas. Ela era uma das que encabeçavam o time. Conterrânea de uma risada marcante passeava pela comédia e pelo drama com naturalidade. Desde então, peço que haja sincronicidade entre o tempo do meu e o tempo de ao menos alguns deles, para que assim, o encontro se faça e os deuses da dramaturgia sintam o poder que emana da minha intrépida criação, e me concedam esse parto compartilhado entre quem cria (o autor) e quem eterniza (o intérprete).      

Aos 28 anos, o duelo entre V I D A e M O R T E ganha cores mais sóbrias, contornos mais densos. A idade traz o amadurecimento e este por sua vez dilata os olhos pra que enxerguemos a vida por ângulos antes inabitáveis. A doçura e o amargor de cada experiência nos guia ao aprendizado e ao reflexo do nosso ser-essência entre fragilidades e fortalezas.

Ler a notícia da morte do Caio um dia depois de ficar feliz com a melhora do seu estado de saúde, foi um baque similar ao de ler ainda na companhia da sonolência matinal típica das segundas-feiras, a notícia de que um helicóptero havia caído na cidade de São Paulo, e minutos depois ao retornar do almoço, saber que o Ricardo Boechat estava a bordo (11 de fevereiro de 2019).

Na finitude da vida ele não esteve em nenhum dos meus projetos, mas é referência onipresente do jornalista que eu almejo ser. Boechat era crítico, sensato e ao longo da sua trajetória na cena jornalística transitava com maestria entre o protocolo e a informalidade da notícia. Cada comentário feito por ele era uma pílula convidativa a reflexão. Sua clareza argumentativa nos fazia ouvir, tirar a venda autoritária da convicção e enxergar os entre-lugares da mesma notícia.     

Quando criança a morte me assombrava. Ao longo do dia era apresentado a cenas que vinham aleatoriamente. Na fila do mercado, sentado no ônibus, no banco de carona do carro, a morte sempre me colocava no centro do seu tablado. Era como uma visão profética do que temos certeza de que um dia virá. A possibilidade de ter a vida interrompida de maneira abrupta permeava meu imaginário prematuramente trágico.  

Num país onde a expectativa de vida atual é de 76 anos, morrer aos 42 é incompreensível. E morrer, seja na aspereza do asfalto ou na plenitude do céu num acidente improvável é um golpe duro na prosa da vida. A perda abala a crença, dificulta a compreensão.

Ela é uma experiência cíclica imersa na polifonia abstrata do próprio existir. Não há espaço para o literal ou para uma objetividade fundamentalista castradora da sublime poética das incertezas. A regra do jogo que não lembramos ter lido. A defesa, o ataque, a inércia, a passividade, a fúria, o mistério.    

Estar vivo não significa viver.

Morrer é uma forma de estar vivo.

São estados não-antagônicos que passam a espelhar sinônimos simbólicos de um enigma que implode a lógica criacionista da vida terrena. Cada ciclo se reinicia na metástase do corpo, no descompasso dos sentimentos, no renascer de significados.   

Viver é melhor que sonhar no momento em que abrimos mão de tentar decifrar o sonho. Sonhar sem saber quando a morte virá é mais prazeroso do que morrer pela simples curiosidade de saber como é.

Sentir sem sentido.

Esse é o segredo!

Felipe Ferreira

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Felipe Ferreira é uma "ostra" que escreve, entrevista e roteiriza.

Em 2014, publicou a coletânea de textos "Griphos Meus" e atualmente desmembra memórias com seu 1º romance,

"Desmembro - O Eu e Os Nós", com previsão de lançamento para 2019.