O doce sabor do mel
“Na imagem podemos ver um homem fugindo de um tigre, segurando-se num cipó que é roído por dois ratos, um branco e outro preto. Na água vemos dragões esperando sua queda. Mas em meio a toda essa cena difícil, goteja mel de uma pequena colmeia de abelhas. O tigre representa o passado e as ações da qual o homem tenta fugir, mas não consegue distanciar-se. Os dragões representam a retribuição pelas obras passadas, ficam aguardando a inevitabilidade do homem em colher os frutos das suas ações. Os dois ratos, um branco e o outro preto, representam o passar dos dias e noites contando assim a vida e o tempo do homem.
Mesmo em uma situação difícil o homem que mal suporta seu peso agarrando-se ao cipó, desfruta do mel que goteja em sua boca. Parece esquecer-se de seu passado e negligencia seu futuro. A maioria da sociedade encontra-se nesse estado, distraída com o mel dos desejos e apegos da sociedade comum, procura mediante a tentativa de saciedade não pensar na inevitabilidade da colheita das próprias ações, negligenciando seu próprio futuro. Como se não bastassem essas dificuldades, os valores morais da sociedade mudam a cada dia, iludindo ainda mais o homem em seu sofrimento. Dessa forma, o homem erra achando que está fazendo o que é certo e, mesmo errando inconscientemente, colherá de igual maneira os frutos de sua inconsciência.”
Esta é uma clássica parábola narrando a trajetória dos seres ao mundo da ilusão produzido pela nossa mente. Tudo provém da mente, tudo retorna à mente. Pode soar fatídica, desconsoladora, negativista, mas como todo conto budista visa apenas apontar para a realidade e sua saída. A vida passa (e nem falo aqui pelos meus possíveis 89 anos de vida por vir, mas cada instante dela), os ratos do dia e da noite são impiedosos, nossas ações nos perseguem inexoravelmente. O Buda quis apontar nessa parábola para que despertemos a ponto de não haver tigres nos perseguindo, mas sementes de ações corretas para lá embaixo nos aguardar flores de lótus em uma Terra Pura.
Vamos voltar lá no passado, logo que o Buda desperta após sua meditação. Ele percebe de maneira absurda a interconectividade de tudo e todos, que “isso existe, porque aquilo existe” e que de maneira inevitável se extinguem. E proclama, assim, as auspiciosas Quatro Nobre Verdades:
1° a existência do sofrimento na vida, a amargura, a doença, a morte, a separação, a aversão, o desequilíbrio, o desafeto,
2° a origem desse sofrimento está no apego, na dependência ao desejo produzido pelos nossos Cinco Agregados (vimos em outro post),
3° Ele reconhece porém que a cessação desse apego/desejo resulta no fim dos sofrimentos e proporciona um estado de paz e alegria,
4° e esta cessação se faz por oito novos olhares, as Oito Nobre Caminhos.
Os Oito Nobre Caminhos, a Compreender Correto, o Pensar Correto, o Falar correta, o Agir Correto, o Modo de Vida Correto, o Esforço Correto, a Atenção Correta e a Concentração Correta. Estes Caminhos, porém, não são uma sequencia linear, se interconectam constantemente. Será que conseguimos mudar cada um deles em nosso cotidiano?
SOMOS PUXADOS CONSTANTEMENTE PELO CAVALO DOS NOSSOS HÁBITOS, NOS SENTIMOS IMPOTENTES DIANTE DELE, DECLARAMOS GUERRA A NÓS MESMOS.
É um exercício constante, um caminho alimenta o outro e poderíamos ficar horas falando sobre eles. Se tivermos em mente a sua dinâmica, percebemos, assim como o Buda, que todos oito agem simultaneamente a todo instante e em qualquer atividade humana. Tente fazer isso em um momento de seu dia.
Ao pegar um ônibus logo cedo rumo ao trabalho, o atraso e multidão começam nos irritar, nossos pensamentos se aceleram, soltamos um comentário e sem querer gesticulamos de raiva. Não é assim? Agora, potencialize ao resto do seu dia! Ah, os tigres soltam suas garras e correm atrás da gente, os ratos comem cada minuto da nossa energia porque não nos atentamos aos nossos pensar, falar e agir, mas lá embaixo meu chefe voraz está espumando por eu ter chegado de mau humor!
Não pretendo aqui induzir a um puritanismo de comportamentos, longe disso, o que o budismo nos orienta é Compreender e Atentar aos revezes da vida. Afinal, se sofremos, queremos sair dele. O inferno não foi feito para mudar, mas para sair dele.
Entre os Oito Caminhos, os mais norteadores são a Compreensão e a Atenção. Eles produzem a capacidade de proporcionar discernimento aos fenômenos ao nosso redor e são tanto a causa quanto o efeito dos seis demais. O três primeiros (pensar, falar e agir) determinam nossa interação com a realidade: ao pensar, eu falo e acabo agindo. Na psicologia aprendi que se chama de pensamento automático e comecei a ficar mais atento procurando compreender antes de falar. Ops, cai sem querer nos primeiros dois caminhos! Buda no divã!
E que tal pensar no inverso dos Oito Caminhos?
SEM COMPREENDER, PENSO IMPULSIVAMENTE, FALO BESTEIRA, AJO BRUSCAMENTE, VIVO CONFUSO, GASTANDO ENERGIA, DESATENTO E DESCONCENTRADO SOBRE MIM E O OUTRO. SEM COMPREENDER E ATENTAR, EU DISCRIMINO, EU SUBJUGO, EU REPULSO, TANTO A MIM QUANTO AO OUTRO.
Isso me lembra a questão LGBT+, quanto do preconceito e discriminação são produtos dos Oito Caminhos invertidos. Resultado? Sofrimento, mental ou físico. Vivemos impensadamente, afinal, o sabor do mel é sedutor, é o que mais me importa, sem perceber o tempo passando e as feras me perseguindo.
“Onde existe percepção, existe ilusão”.
Buda Shakyamuni a Subhuti, um de seus seguidores, no Sutra do Diamente.
Gassho
Rev. Jean Tetsuji釋哲慈
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