Coletivo Indra

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O filho embaixador: o passado que é presente

A intenção do presidente em nomear um de seus filhos para ocupar o cargo de Embaixador nos Estados Unidos, na representação diplomática mais estratégica para o país, não foge à regra de como a coisa pública é encarada no Brasil desde os seus primórdios. Aliás, não fosse pela história da polêmica indicação, a forma como a família do presidente sempre tratou o exercício das funções públicas já seria digna de nota. Vamos, mais uma vez, lanças luzes sobre a nossa história. 

Durante o período de colonização do Brasil, a administração exercida por Portugal era limitada aos aspectos mais elementares, que garantissem a manutenção do seu domínio e os lucros decorrentes da exploração, de modo que a organização social, por aqui, era feita pelos próprios colonos. Ao lado disso, a vida transcorria quase que exclusivamente dentro dos limites da fazenda, na qual o patriarca era a figura de mando central, detentor do poder sobre tudo e todos. Este, passava a ocupar as administrações regionais, impondo a sua vontade e seus interesses, diante do fraco controle da metrópole. 

Com isso, as instituições públicas eram vistas como desnecessárias, já que seu poder pessoal era ilimitado e exercido sem interferência da metrópole portuguesa, cuja aristocracia, por sua vez, apenas deseja a manutenção de seus ganhos. Aristocracia esta, que ocupava todos os postos burocráticos diante da proximidade com o monarca, com o único intuído de gozar das benesses deles decorrentes. Essa burocracia, onerosa e inflada, foi transferida ao Brasil com a vinda da família real em 1.808. 

A esfera privada se estendia sobre a pública, portanto, havendo uma mistura e indistinção entre essas duas instâncias da vida. A isso, dá-se o nome de patrimonialismo; ou seja, é o uso da coisa pública como se fosse sua. 

Posteriormente, com a proclamação da república essa característica patrimonialista se manteve, já que o poder dos latifundiários estava consolidado e as eleições eram extremamente fraudadas, sendo o Estado dependente destes donos de terras e também ocupado por eles. 

Em resumo, desde a nossa formação há uma indistinção entre aquilo que é público e o que é privado, cujas marcas deixadas são percebidas até hoje. O “você sabe com quem está falando?” ou “tenho um amigo na prefeitura que pode dar um jeito nisso” estão relacionados a isso, ou seja, o uso do público em benefício privado.

Em contraponto a isso, o exercício da administração pública, em benefício de todos, de maneira republicana e democrática demanda a observância de um princípio, consagrado em nossa Constituição de 1988, que é o da impessoalidade

Isso significa, que a Administração Pública não pode beneficiar aqueles que são próximos ao seu exercício, ou tampouco ser utilizada em prejuízo direto dos inimigos daqueles. Sua atuação deve ser impessoal, portanto, no sentido de que deve agir como manda a lei, não importa a quem. 

O objetivo disto, é que todos encontrem segurança na administração pública, que atuará de maneira equânime para todos e sem arbitrariedades, a qual deve agir para o atendimento daquilo que a lei determina, tendo como norte o atendimento do interesse público. 

Um dos fundamentos da Impessoalidade é decorrente da própria ideia de república, já que o estado não tem um dono e as coisas públicas pertences a todos e, portanto, devem ser destinadas para toda a coletividade. Por essa razão, a apropriação indevida dos espaços e mecanismos públicos fere o cerne da nossa organização social e não poderia estar mais longe da ideia de democracia. 

A violação da impessoalidade não consiste de mera infração ética, ou defeito menor, mas coloca em xeque a legitimidade de todas as estruturas instituídas, pois passam a ser utilizadas para outras finalidades que não aquelas que motivaram sua criação, apenas em proveito daqueles que as ocupam. Infelizmente, o Brasil ainda precisa avançar em muito nisso, pois, como escreve José Murilo de Carvalho em A Cidadania no Brasil, “nossa república nunca foi republicana”, já que são mantidas práticas que não combinam com essa concepção e são de todo condenáveis.

Com relação a questão do filho embaixador, fica evidente, portanto, que essa indicação se insere nesse contexto de patrimonialismo e, antes mesmo de se falar em nepotismo, fere o princípio da impessoalidade, já que se busca beneficiar alguém em específico (“vou beneficiar filho meu, sim”). 

Aliás, um parêntese. A ideia defendida pelo presidente, de que seria legítimo contar com aqueles em seu entorno para o exercício dos encargos públicos, já que se tratam de pessoas de sua confiança, consiste num pensamento que já foi superado pela modernidade, cuja prática deveria ter ficado esquecida na idade média quando, aliás, os estados republicanos ainda não haviam se constituído como conhecemos hoje. 

Essa concepção, remonta ao governante absoluto e que pode ser derrubado pela força por seus adversários, de modo que se cercava de seus familiares, contando que estes não o traíram. Infelizmente, se pautar por ideias e conceitos medievais parece ser uma constante na gestão desse presidente. 

Em suma, se apropriar do estado em benefício próprio é coisa tão velha quanto esse país e sempre permeou o exercício da política por aqui, estando o atual presidente em consonância com as práticas mais lamentáveis para a gestão pública, tendo ele próprio criado uma oligarquia junto com seus filhos, que ao que tudo indica conta com o apoio das milícias do Rio de Janeiro, o que não parece diferir muito dos fazendeiros do período colonial e seus capatazes. 

A solução desse problema, certamente não passa apenas pelo voto, mas depende também que se evite contar com aquele amigo na prefeitura, ou resolver a multa com o conhecido do Detran. Quando estamos diante da esfera pública, temos que lembrar que aquilo é de todos.  

Arthur Spada

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A COISA PÚBLICA E A PRIVADA - Affonso Romano de Santanna

Entre a coisa pública
e a privada
achou-se a República
assentada.

Uns queriam privar
da coisa pública,
outros queriam provar
da privada,
conquanto, é claro,
que, na provação,
a privada, publicamente,
parecesse perfumada.

Dessa luta intestina
entre a gula pública e a privada
a República
acabou desarranjada
e já ninguém sabia
quando era a empresa pública
privada pública
ou
pública privada.

Assim ia a rês pública: avacalhada
uma rês pública: charqueada
uma rês pública, publicamente
corneada, que por mais
que lhe batessem na cangalha
mais vivia escangalhada.

Qual o jeito?
Submetê-la a um jejum?
Ou dar purgante à esganada
que embora a prisão de ventre
tinha a pança inflacionada?

O que fazer?
Privatizar a privada
onde estão todos
publicamente assentados?
Ou publicar, de uma penada,
que a coisa pública
se deixar de ser privada
pode ser recuperada?

— Sim, é preciso sanear,
desinfetar a coisa pública,
limpar a verba malversada,
dar descarga na privada.

Enfim, acabar com a alquimia
de empresas públicas-privadas
que querem ver suas fezes
em ouro alheio transformadas.

In: SANT'ANNA, Affonso Romano de. A poesia possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. Poema integrante da série Aprendizagem de História