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O inquérito das fake news e seus riscos

Nesta quinta-feira, 18 de junho, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento, em sessão plenária, quanto a legalidade do inquérito que investiga fake news e ameaças contra ministros da corte. Em 10 votos a 1, os ministros votaram pela continuidade do inquérito, aberto pelo atual presidente da corte, ministro Dias Toffoli, que designou, sem sorteio, o ministro Alexandre de Moraes como Relator. 

No julgamento foi apreciada a ação ajuizada em 2019 pelo partido Rede Sustentabilidade, na qual apontava diversas ilegalidades na investigação, tais como a violação da separação de poderes e usurpação dos poderes do Ministério Público, falta de fatos concretos e definidos para justificar a investigação, direcionamento da investigação a relator específico e seu caráter sigiloso, entre outros pontos. À época, chegou-se a argumentar que a investigação pudesse ser uma retaliação ao pedido de abertura da “CPI da lava-toga” no Senado. Além disso, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, também havia se manifestado de forma contrária à investigação. 

Um dos principais pontos de questionamento ao inquérito é o fato de que nele não há separação entre vítima, acusador e julgador, ao contrário do que manda a nossa Constituição. Segundo ela, não haverá no país juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII), o que significa dizer que não se pode criar uma instância específica ou temporária para punir determinada pessoa. Além disso, para a condenação de alguém, o processo deve observar o chamado o Devido Processo Legal (art. 5º, LV), de modo que somente será válido se seguir todas as etapas previstas na lei, o que não aconteceria nesse caso, com atuação espontânea do tribunal, sem ter sido provocado a isso, usurpando a competência do Ministério Público e além de agir simultaneamente como investigador e juiz. 

A despeito da divergência do Ministro Marco Aurélio, prevaleceu a tese de que é possível que a investigação seja feita pelo próprio Supremo, na hipótese de omissão da Policia Federal ou do Ministério Público. Nesse sentido, quando o inquérito passou a se direcionar contra as redes bolsonaristas, o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, criticou a investigação e pediu a sua suspensão, a despeito de ter agido de maneira diferente em outubro do ano passado, quando se manifestou de forma favorável ao procedimento logo após ter assumido o cargo. 

Apesar de os ministros terem votado pela legalidade do inquérito, não se sabe qual será o destino da investigação após o seu término. Isso porque, se o papel da acusação caberia ao Ministério Público, este pode não oferecer qualquer denúncia em razão da discordância com a forma como a investigação começou. Outra hipótese, é que ações relativas aos crimes contra a honra, cujas penas são pequenas, mas os processos podem ser promovidos pelas próprias vítimas, sejam propostas pelos ministros que se sentirem lesados. 

Esse inquérito é mais um capítulo da intensa e complexa vida política do país e demonstra os perigos para a democracia em períodos de crise. Aliás, o partido Rede, autor da ação, voltou atrás no curso do processo e tentou a sua desistência, por passar a entender que a investigação teria se tornado um instrumento de defesa da democracia. Poderia se argumentar que os limites de atuação das instituições deixam de ser claros em momentos como esse, sobretudo em razão da inércia de quem deveria agir, mas os resultados disso podem ser desastrosos. 

A legalidade duvidosa desse inquérito tem servido de argumento aos apoiadores do presidente para justificar boa parte de suas críticas a corte, além de fomentar o discurso de perseguição que faz parte da estratégia de comunicação bolsonarista, cujo objetivo é estimular o desprezo ao sistema democrático e à independência dos poderes. Assim, mesmo quando a situação é diferente, como no caso da investigação que apura a prática de atos antidemocráticos, aberta, esta sim, após provocação da PGR, e em razão do qual alguns militantes de extrema direita foram presos temporariamente, a estratégia de perseguição e vitimização já está posta e sedimentada.

 É certo que esse método de comunicação - que não se ignora ser anterior e mais amplo que a referida investigação, mas que agora é agravado - também se caracteriza pela inversão do sentido das palavras. Assim, aquele que sempre defendeu o regime autoritário e a morte de opositores, diz que quer armar a população para combater uma eventual ditatura no país. A disseminação de mentiras e notícias falsas pelos portais da extrema direita passam a ser defendidas por eles como mera liberdade de expressão. Inverte-se, assim, todo o sentido das coisas em prol desse projeto de poder. Daí, quando deflagrou-se uma operação de busca e apreensão no referido inquérito, parte dos alvos comparou o ato a práticas da Alemanha nazista, como se o fascismo estivesse do lado de lá, e eles fossem vítimas inocentes e perseguidas.

Por isso é perigoso que a realidade de munição a esse discurso de fantasia e torne factível essa narrativa, ajudando em sua disseminação. A necessidade de reação das instituições em defesa da democracia, que por vezes é tímida diante do descalabro dos atos praticados pelo chefe do Poder Executivo e seu entourage, não pode vir através de atos ou procedimentos ilegais, os quais colaboram para aumentar ainda mais o descrédito institucional perante a sociedade. O sistema prevê mecanismos para se preservar e combater o anseio autoritário de alguns, que deveriam ser acionados mesmo que isso provoque uma reação desmedida por aqueles que se vejam atingidos e descontentes, mas certamente ainda assim são preferíveis que a pretensão de combater o arbítrio e a ilegalidade com a mesma postura. 

O que não pode é que certos mecanismos permaneçam sendo peça decorativa, como por exemplo o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados que não caça deputado que atenta claramente contra o regime, como é o caso do filho do presidente que já falou em ruptura do sistema por mais de uma vez. As reações podem ser fortes e enérgicas, mas sempre em observância a Constituição e as leis. O antídoto ao veneno não pode ser mais veneno. 

Arthur Spada

Instagram @arthurspada