Coletivo Indra

View Original

Sobre Propaganda, Malcolm X e minha estreia no Blog . G

Nessa quarentena assisti à série documental “The Century of the Self” (2002) de Adam Curtis, cujo enfoque é discutir o uso das técnicas psicológicas de Freud por seu sobrinho Edward Bernays, que foi a primeira pessoa a aplicá-las nas relações públicas e marketing nos Estados Unidos. É surpreendente o poder mental que uma propaganda consegue ter e o quanto isso envolve um estudo psicológico, simbólico e comportamental do ser humano. Fiquei reflexiva sobre como essas estratégias psicológicas são utilizadas para fortalecer o racismo estrutural e o epistemicídio (apagamento dos saberes e tecnologias das culturas) através da propaganda.

Quando o enfoque é educação, a propaganda diversas vezes interferiu perigosamente no conteúdo escolar e a ausência de representação histórico-cultural negra e ameríndia na educação brasileira reforça a simbologia de humanidade branca como define o psiquiatra Franz Fanon. 

Durante todo o meu ensino fundamental e médio me foi negado conhecer a história, cultura, literatura, filosofia que tenham África ou sua Afrodiáspora como protagonistas positivas. Lembro-me que quilombo foi me apresentado como reunião de negros fugidos e não como união sócio-político-cultural-territorial de negros e negras que não negociavam a sua humanidade ou liberdade diante do cárcere da escravidão. Símbolos e contribuições negras ainda hoje são atrelados exclusivamente ao samba, capoeira ou culinária. Nega-se o conhecimento da linguística do “pretuguês” que nos fala Lélia Gonzalez, o aquilombamento como estratégia de sobrevivência e as revoltas como as das Carrancas e dos Malês por exemplo.

O que aprendi sobre os negros afro-americanos e suas lutas foi por via autodidata. As literaturas de Alice Walker, Toni Morrison, Maya Angelou, Langston Hughes, James Baldwin, as músicas de Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Nina Simone, Abbey Lincoln, Miles Davis, John Coltrane, Jimmy Hendrix e os filmes da Blaxploitation e do Spike Lee serviram como meus professores de letramento histórico-racial da sociedade americana. Inclusive, foi pelo diretor afro-americano que eu conheci Malcolm X, aniversariante deste dia 19 de maio em que, coincidentemente (ou não?!), eu estreio como colunista do Blog G.

Foram em duas fitas VHS completas que vi Denzel Washington performar este controverso líder negro que defendia a autodeterminação dos afro-americanos a partir da ótica do Islã e da Nação Negra do Islã, organização religiosa cujo respeito histórico não se deve negar. 

Malcolm X é para mim um destes personagens que sofrem do epistemicídio e do racismo histórico. A mensagem sobre ele que nos chega no Brasil é de periculosidade, embate e violência, muito contrastante com o ideal de harmonia racial que a propaganda brazuca gosta de imprimir. Talvez por esse motivo que as imagens atreladas a Malcolm no nosso imaginário social sejam aquelas construídas pela propaganda racista norte-americana que via nele um agente de desestruturação do status quo Ocidental. Não à toa foi assassinado, prática de eliminação comum utilizada pela hegemonia com figuras de liderança.

O Brasil viveu essa experiência há poucos anos com Marielle Franco. (Quem mandou matar Marielle?)

A construção da propaganda violenta em torno de Malcolm faz com que nos afastemos de seu pensamento engajado e lúcido das possibilidades de sobrevivência de uma afrodiáspora que viveu (e ainda vive) uma experiência segregadora, subalternizante e excludente na sociedade americana. 

O conjunto civilizatório africano tem as experiências do passado como caminhos rumo ao nosso Sul presente e futuro (não precisamos nortear nada!). Então, apesar de não concordar com os seus métodos - principalmente porque a nossa experiência com o racismo a lá brasileira é outra -, a força do pensamento de Al Hajj Malik Al-Shabazz é um lugar de nutrição para entender não só aquela afrodiáspora, mas também para produzir reflexões sobre a nossa. Por isso, vemos Malcolm em tudo nas comunidades afro-americanas. Crianças carregam seu nome; escolas, avenidas e praças também; porque entendem o patrimônio simbólico e intelectual que essa figura tem.  

Quando se lê a autobiografia ou os discursos do Ministro Malcolm podemos analisar o contexto e os caminhos que o levaram a levantar uma posição de ruptura social entre negros e brancos nos EUA e quais foram as consequências - inclusive psicológicas - dessa decisão tomada por ele. Fora que ele era um homem profundamente religioso e sabia, por meio de uma oratória impecável, pintar cenários discursivos que faziam sentido para a experiência espiritual de seus interlocutores.  - Com certeza inspirado nos discursos e oratória de Marcus Garvey, outra personagem subestimada pela História. Os pais do Malcolm eram garveístas e membros da UNIA, organização internacional de Garvey para o progresso do negro no mundo. 

Assim como Martin Luther King Jr., corriqueiramente utilizado como contraponto, Malcolm estava disputando a narrativa da humanização das pessoas negras. As estratégias utilizadas por ambos, apesar de antagônicas, os levaram ao mesmo lugar do assassinato, porque as duas confrontavam a hegemonia político-social-econômica americana, no que tange a humanidade integral dos negros americanos.

Ao romper com a Nação do Islã, o ministro cria em 1964 a Organização da Unidade Afro-Americana (OAAU) que possuía um programa básico de luta com cinco pilares: restauração, reorientação, educação, segurança econômica e autodefesa. Tais pilares são até hoje fundamentais para construir a luta antiracista, antigenocida e por equidade racial da população negra. Vale ressaltar que autodefesa pra nós, aqui nessa diáspora, não se relaciona com pegar em armas, mas sim com as estratégias comunitárias que podemos lançar mão para nos defender de violências estruturais e estruturantes que o brasil impõe. 

Eu defendo que a Educação e a Arte são possibilidades reais de autodefesa, porque nos deixar conscientes da nossa realidade é uma forma de nos defender. Faz parte do letramento racial conhecer Malcolm X. Por isso, nesse texto de estreia, pedindo agô ao ancestral aniversariante que completaria 95 anos, vou indicar alguns materiais que nos ajudam a conhecê-lo e celebrá-lo: 

Na Literatura, “Autobiografia de Malcolm X” vendido pela Territorio Afrikano/ UCPA e “Discursos Malcolm X” da Editora Ananse; no Teatro, o espetáculo “Encontro Malcolm & Martin Luther King Jr” dirigido por Isaac Bernat com Izak Dahora como Malcolm X e Rodrigo França como Martin Luther King Jr.; no Audiovisual, o podcast “Lado Black com o episódio 80 sobre ele, o filme “Malcolm X” dirigido por Spike Lee e estrelado por Denzel Washington, a série “The godfather of Harlem” produzida por John Ridley, em que o ator Nigél Thatch interpreta Malcolm. Esta série não é sobre a personagem em si, mas ele tem destaque na obra. 

Com a intenção de deixar um gostinho de quero mais em vocês, firmo o nosso encontro quinzenal às terças-feiras no Blog G. Será um espaço dedicado às reflexões sobre as crônicas do viver a partir das afroperspectivas. Sejam bem-vindes!

Aza Njeri

Instagram @azanjeri

Siga no instagram @coletivo_indra


Bem Vinda Aza

Aza Njeri tem 34 anos, é doutora em Literaturas Africanas, pós doutora em Filosofia Africana, pesquisadora de África e Afro-diáspora, professora, multiartista, crítica teatral e literária, mãe e youtuber.

Segue os links para você conhecer seu trabalho

Instagram @azanjeri

twitter @njeriaza

canal youtube youtube.com/azanjeri

Linkedin aza-njeri

contatoazanjeri@gmail.com