“Os olhos e os poros" de Ana Flávia Cavalcanti
Já ouvi na voz de desconhecidos, na fala de pessoas próximas e no título de programa de TV que viver é a arte do encontro. Eu concordo! Mas reencontrar pessoas, obras ou a nós mesmos é uma experiência de expansão que transforma.
O prefixo “re” tem origem no latim e nunca esteve tão em voga. Ressignificar, rememorar, revisitar. O leque de possibilidades é enorme e nesse momento adverso de pandemia eu tive o prazer de reencontrar a Ana Flávia Cavalcanti duas vezes.
Em 2015, conheci seu trabalho e tive a oportunidade de entrevistá-la pelo curta “Personal Vivator”. Um ano depois, escrevi sobre “Rainha”, filme também protagonizado por ela e dirigido pela cineasta Sabrina Fidalgo. Agora, ela entra na minha casa todo dia com a reprise de “Malhação - Viva a Diferença” e voltei a entrevistá-la depois de assistir “Rã”, seu recente trabalho como diretora, exibido e premiado em festivais mundo afora compartilhando o que os seus olhos veem e o que seus poros sentem.
I - Em "Rã" você divide a direção com a Julia Zakia, assina o roteiro e protagoniza a obra. Como é estrear atrás das câmeras já recebendo uma indicação ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, um festival de tradição no calendário audiovisual do país? Mais que o status e o simbolismo alegórico da premiação em si o que ela representa de maneira concreta para o cinema autoral que você faz e acredita?
Em primeiro lugar simboliza que o filme é bom, bem produzido… nesse sentido de ter sido um filme pensado, gestado, imaginado e produzido de uma maneira muito profissional. Fomos contemplados com o edital de contas da SP Cine, e eu gosto de falar isso porque a SP Cine é a empresa de cinema no Brasil hoje que nos dá mais espaço, visibilidade e dinheiro. Quando a gente vê a Ancine no estado que tá e a SP Cine tem um planeta de diferença. Queria deixar um parabéns pra Laís Bodanzky que está a frente da SP Cine nesse momento. E esse edital no valor de R$ 60 mil nos possibilitou o profissionalismo máximo. Não tivemos uma prática de cachês maravilhosos ou cachês justos que se praticam no mercado porque a gente recebeu um prêmio de R$ 60 mil que por um lado é bastante dinheiro pra quem tá recebendo um auxílio de R$ 600 ou pra quem não tá recebendo auxílio nenhum. É muito dinheiro quando você pensa que é um dinheiro investido no cinema, no audiovisual. E durante muito em tempo em fiquei em crise com isso. Mas tem uma coisa que é importante dizer que o “Rã” e outros filmes que foram contemplados com o dinheiro público, que ganharam editais, eles empregam muitas pessoas. Aí tem uma função que é uma função de empresa, uma lógica de mercado… Um pensamento capitalista até. Você fala vamos dividir a grana e todo mundo ganha e pode depois retornar com essa grana pro mercado seja pra levar o filho pra ver um filme no Cinemark, seja pra consumir um bem, uma comida, pagar um aluguel… É uma maneira que a gente tem de produzir trabalho… E na nossa equipe, por exemplo, a gente teve 90% da equipe composta por mulheres, mulheres negras, então a gente filmou num interior, num bairro periférico… Movimentamos o bairro também. Locamos alguns espaços pra que o filme pudesse acontecer. Foi uma mobilização geral. Aí o filme chegar e ser selecionado pra Berlinale 2020, pra Amostra Generation, ter ganho o prêmio de “Melhor Curta” no Festival de Brasília do ano passado, ter sido exibido no Senegal, em Salvador, no Festival de Curtas do Rio… Tudo isso vai abrindo mais espaço porque chega o filme e a posição de diretora é muito diferente da posição de atriz ou uma outra posição dentro do filme. Hierarquicamente falando é a posição máxima, então quando a gente fala em ocupar espaços de poder é isso. É tá também como atriz, como figurinista, como maquinária, mas é tá também, sobretudo, como diretora porque só quando eu ocupo esse lugar que eu consigo decidir todas as outras participações, todas as outras pessoas que vão estar comigo nesse trabalho. E isso faz toda a diferença porque a minha presença numa produção vai alterar essa produção do ponto de vista racial e social porque esse são os meus atravessamentos. Eu penso e falo disso na minha vida e não será diferente no profissional. Tô muito feliz com essa indicação, dia 10 sai o resultado e eu gosto de ganhar. Então eu quero ganhar! Se tudo der certo, se for do nosso merecimento. Mas ao mesmo tempo é um desejo de ganhar pela satisfação pessoal mesmo e dizer “ ai que lindo!”, “é um trabalho que deu certo”. Tem outros filmes maravilhosos dirigidos por mulheres negras. Eu vi “Fartura” da Yasmin Thayná, eu vi “Sem Asas” da Renata Martins… São filmes muito poéticos, bem cinema de autora, sabe? Eu espero que as pessoas vejam os filmes também. Dá pra assistir de graça no portacurtas.org.br. Achei chiquérrima, importante e necessária essa indicação e com certeza absoluta muda minha trajetória como realizadora, cineasta, roteirista, atriz e performer.
II - O curta-metragem faz um recorte social muito contundente da realidade das mulheres pretas, periféricas e mães solteiras que moram nas comunidades Brasil a fora. O cotidiano da Val com as duas filhas é sintoma agudo das estruturas de desigualdade e exclusão enraizadas no processo de formação do país? Há uma convergência das vivências pessoais e familiares da Ana Flávia com a trajetória dessa protagonista?
Sim. Desde o início eu disse que o “Rã” é muito baseado num período da nossa vida, ali primeira infância, eu, minha mãe e minha irmã. Vivíamos em Eldorado, Diadema, onde essa história aconteceu. Em seguida mudamos para Atibaia, pro Caetetuba que é a parte mais periférica, mais favelada… Hoje em dia já melhorou bastante o bairro, mas naquele momento era praticamente abandonado pelo sistema público. E as nossas vivências elas foram muito parecidas no sentido da alienação, na presença da mãe e do pai, porque tem que estar trabalhando, pais separados… Meu pai sumiu no rolê, minha mãe ficou sozinha cuidando da gente, pra dar conta ela tinha que trabalhar. Então ela me deixava com a minha irmã. E tudo isso eu só fui me dar conta depois que eu já tinha crescido. E essa conta chegou pra mim porque a sociedade não consegue e não dá conta de cuidar dos próprios filhos e da própria casa e não remunera bem as pessoas que elas contratam para essas funções. Eu não tinha minha mãe em casa, mas eu não tinha mais ninguém em casa. A minha amiga x que tá trabalhando no projeto tal ela não tá em casa porque ela tá trabalhando e aí ela contrata uma babá pro filho dela. Se ela paga bem essa babá ela pode contratar alguém pra ficar com o filho dela ou contratar uma escola em tempo integral. A gente vai se ajustando e encontrando saídas. Todo mundo fica bem cuidado. O que não pode acontecer é o que acontece até hoje. Uma parte da população é vista, tem gente que se preocupa com o desenvolvimento em todos os sentidos, educacional e na parte da saúde. É uma população muito assistida, muitas vezes a mãe tá em casa, mais a babá, mais a empregada doméstica, mais a vó, as professoras, a professora de inglês, a professora de esgrima, de piano… Enfim, são crianças muito assistidas e do outro lado a gente tem crianças completamente abandonadas a própria sorte que ficam em casa sozinhas durantes umas 10h pelo menos, por dia, que precisam dar conta das necessidades de vida, de comer, tomar banho e das necessidades subjetivas com os perigos, com tudo que pode acontecer com uma criança que vai esquentar a comida, que vai ligar uma televisão, enfim… Abusos sexuais porque são crianças muito abandonadas na maior parte do tempo, é a população que mais sofre abuso. Pobres, pretas, periféricas. E isso tá no filme de uma maneira mais carinhosa, mais afetuosa porque eu quis muito contemplar a força da minha mãe… É uma homenagem a minha mãe, a tudo que ela teve que dar conta mas não necessariamente foi assim, exatamente assim. É uma inspiração e aí acho que o cinema e as artes plásticas, o teatro, a música… Elas existem pra que a gente possa de alguma forma ressignificar as experiências que a gente vive. As legais e as esquisitas. Tem muita coisa no filme que está sempre representada de um jeito mais legal do que foi. Eu acho isso forte. E ao mesmo tempo não, tem coisas que vieram da observação pro mundo, pro outro, pra vizinha. E eu tenho um pouco esse estilo, eu gosto disso… Arrisco dizer que muitos artistas também, apesar de que muitos deles não assumem, mas eu acho que é um exercício meio de início. Eu me coloco nesse lugar. Eu estou iniciando meu processo como diretora e roteirista, eu tenho mais experiência em outras áreas e eu sinto que tem a ver com esse início que é botar pra fora tudo isso que os meus olhos e os meus poros absorveram nesses últimos 38 anos. E quem sabe depois disso e quem sabe se no meu país e no mundo a nossa espécie consiga evoluir pra que a gente tenha outro tipo de troca e que esse outro tipo de troca possa nos dar outro tipo de expectativa de vida e visão. Por enquanto ainda eu não consigo falar de outras coisas se não essas que estão no meu entorno e me chacoalham demais.
III - Antes da pandemia da covid-19 você estava no ar como a delegada Miriam em “Amor de Mãe”. Com as gravações paralisadas sua volta foi antecipada com a reprise de “Malhação - Viva a Diferença”. Você tem acompanhado a reexibição? Como é a sensação de rever um trabalho tão emblemático, elogiado e já finalizado? Nesse hiato de 2 anos a diretora Dóris ainda tem muito a ensinar ao público sobre educação, diversidade e igualdade social?
Foi muito bom ter feito Malhação - Viva a Diferença. Eu assisto as vezes, não sempre, mas a minha mãe vê todo dia e me conta, manda um monte de foto… A Dóris tem muito pra ensinar, né? Porque a gente não mudou, a gente não evoluiu tanto dentro das temáticas abordadas. A gente falou de tanta coisa importante. De alienação parental, de assédio, de gravidez na adolescência, de LGBTQI+... A gente falou de amor entre amigas, essa mudança que foi assim um paradigma muito forte na narrativa, principalmente nas Malhações… Do que significa contar histórias para crianças e adolescentes. É uma super semente que você tá jogando e quando o Cao (autor da novela) vem e transforma o amor romântico, essa expectativa depositada no homem, de uma mulher para o homem - é quase sempre assim - e aí quando tem uma questão de classe a mulher sempre é pobre e o homem é rico… Enfim, todas essas réplicas trashs de como se é, como se deve ser. Essa Malhação rompeu com tudo isso porque de saída você já não tem mais essa expectativa de amor romântico, são 5 protagonistas, né? E o protagonismo é bastante diluído e você acompanha o amor e a descoberta do amor entre essas cinco amigas. Isso também eu acho revolucionário. É recorde de audiência. Eu li outro dia que deu mais audiência agora do que quando passou… Eu tenho muito orgulho, amor e sempre falo desse trabalho… A Dóris foi um divisor de águas pra mim, no sentido de que eu me aperfeiçoei, aprendi muito, pratiquei mais, tive mais tempo de tela, filmei mais, estive mais vezes no set… Tudo isso que faz o trabalho aprimorar. Por isso que é tão importante essas presenças. Porque quando você vê uma atriz branca maravilhosa, todo mundo ama, não é que ela não seja boa. Ao contrário, o trabalho dela tá com ela. As inúmeras oportunidades que essa pessoa, que essa atriz, que essa mulher teve pra aprimorar o trabalho ele é 10 mil vezes maior do que uma atriz como eu, ou como uma atriz negra que tá iniciando, que ainda não fez nenhuma participação no audiovisual, no cinema, novela, série, teatro… Eu costumo dizer que não é magia é tecnologia. Tem uma coisa de você praticar e quanto mais você pratica mais seguro você fica. A televisão é um ambiente bastante “pode ser”, “pode não ser”, que assusta porque é uma indústria. A Rede Globo, a Record, o SBT, as séries da Netflix, as produtoras de São Paulo, a Conspiração, a O2, a Pródigo, a Bossa Nova… O set de filmagem é uma coisa que te impacta, pode te travar, sabe? São muitas pessoas circulando, você tem que ter uma super concentração, você tem que não só decorar o seu texto, entender seu texto, sua personagem e dá conta de fazer isso naquela situação, que é bastante caótica, as vezes. Mas não caótica pelo caos geral, de gritaria, mas simplesmente porque o trabalho demanda essa aceleração e são muitas pessoas trabalhando juntas ao mesmo tempo. Isso faz toda a diferença, você estar habituado nesse ambiente, você conseguir se colocar e se tranquilizar pra dar o seu texto, pra se colocar ali naquela situação e falar se gosta, se não gosta… Tem a ver com a prática. Então a Dóris me ofereceu, me possibilitou essa prática muito importante.
IV - A solidão da Val escancara o machismo entranhado na estrutura familiar que concede ao homem o direito de escolher ser ou não pai, mas ao mesmo tempo naturaliza a maternidade compulsória para que a mulher ela aceite e cumpra seu “papel”. Qual a sua opinião sobre a maternidade idealizada nesse selo de legitimação do feminino? Os diferentes contextos sociais e culturais ressignificam o ser mulher e o ser, ou não, mãe?
É muito doido porque a gente tem a maior população de mães solos, de mães solteiras do mundo. Não é do Brasil, não é da América Latina, é do mundo. Tem muitas “Vals” no Brasil. Mulheres que são mães compulsórias que tem que dar conta da maternidade, da renda familiar, do trabalho doméstico, das subjetividades pessoais, dos vizinhos, as vezes do ex-marido pai, carente, solitário, alcoólatra, violento, da família que tem tendência a culpabilizar a mulher. A mulher que falhou, né? Se o filho não der certo, se o casamento não der certo, se o financiamento não der certo é a mulher que não conseguiu. Isso é muito doido porque é o machismo estrutural, essa sociedade que se ampara e se constrói através desse machismo que diz que por um lado as mulheres são fracas, mas que por outro, diz que elas devem ser fortes. Aí você tem que dizer: decidam! Somos fracas ou fortes? Não é bom ser nem só uma coisa nem ser só outra. Esse mito também da fortaleza, Jesus amado, isso daí ninguém aguenta. E você só se culpa porque você não vai dar conta de tudo. E não existe uma pessoa que dê conta de tudo. Então você vai falhar nessa missão e você vai ter que viver com a falha em si, com a culpa por ter falhado e com a expectativa extra muito hiper valorizada pela sociedade que você tem que dar conta de tudo. No nosso caso, lá em casa, eu sinto que a minha mãe não teve essa força, não atinou e não conseguiu se organizar, e não teve ninguém que a ajudasse nesse sentido de buscar os nossos direitos (meus e dos meus irmãos) na justiça. Porque tem uma relação que ela pode ser finalizada entre os pares, entre o casal, mas ela até pode ser finalizada no sentido do afeto, do pai com os filhos, mas do ponto de vista financeiro não. Os pais têm responsabilidades pelos filhos até eles completarem 18 anos. Isso é uma lei. Isso é uma segurança jurídica que as crianças e os adolescentes têm que precisa ser validada. Então se você que é mãe solteira, tá lendo essa matéria e tá assim na dúvida “ah, dá trabalho”... Esse dinheiro, esse suporte e mais do que isso também, é um ensinamento que a gente tem que começar a praticar na nossa sociedade pra ver se os homens se colocam no outro lugar. No lugar de quem assume as responsabilidades e ensina isso. E quando isso começa acontecer, começa a acontecer em todos os níveis. Os meninos também serão educados assim. É uma tentativa de evoluir aí, porque esse mundo que faz todas as vontades dos homens, atendem à todos os desejos dos meninos, protegem eles e ao mesmo tempo os liberam para todos os sentidos. Os corpos deles são libertos desde sempre… Os meninos correm de cueca, de sunguinha e shortinho, sem camisa… As meninas são cobertas desde que nascem praticamente, e os meninos recebem o incentivo social do seu entorno, da sua comunidade, da sua sociedade, muito forte no que diz respeito aos desejos sexuais e as meninas são reprimidas. Então, acho que isso precisa ser transformado, né? Eu luto por isso. Direitos iguais.
V - Eu li numa das suas entrevistas que a ideia do filme surgiu quando você provou carne de rã pela primeira vez. A cena final com Val, o amigo Neném Preto e toda comunidade tratando as rãs, conversando, bebendo, sorrindo, me soou bela e potente por simbolizar a união popular diante as dificuldades e a exclusão. A releitura dessa experiência individual para o coletivo é uma metáfora que dialoga com a necessidade do povo se reconhecer e se fortalecer na labuta diária, no cinema e na arte como um todo?
Na verdade, a ideia do filme surgiu quando eu fui comer carne de rã com a Júlia, que foi minha namorada a muito tempo e a gente dirigiu o filme juntas. Quando a gente foi comer a carne de rã pela primeira vez juntas, nós duas, eu falei pra ela “nossa! a primeira vez que eu comi rã eu tinha 6 anos. eu morava em Eldorado”... Eu contei a história pra ela e ela falou que a história dava um filme. “Escreve!”. Aí eu escrevi uma espécie de conto e depois roteirizamos esse conto juntas. Manhã, dia, casa da Val, rua… Com certeza, é uma releitura sim dessa experiência que eu tive a minha vida toda e que eu acho que praticamente, arrisco a dizer, qualquer pessoa que tenha vivido, morado, crescido numa favela, numa comunidade, num bairro periférico traz em si essa referência do coletivo, do vizinho que te apoia, que te acolhe, que você acolhe também. Vizinho enche o saco também, coloca música alta, dá uns problemas as vezes, mas a gente tem uma força coletiva que ela é ainda nem vista por completo, a gente não deu conta disso. A hora que dermos, sim, uma transformação poderosa e profunda acontecerá no nosso país. E até lá eu acho que esse tipo de… uma espécie de sinapse… Quem viu o filme, quem chegou até essa parte do filme pode em algum momento falar “ops! olha nós! olha nossa força, olha a nossa alegria, olha como a gente contagia, olha como a gente vira o jogo”... A gente tá virando o jogo o tempo todo e eu não quero fazer uma apologia a virar o jogo, que a vida tem que ser estranha pra gente virar o jogo, que somos muitos fortes… Não é exatamente isso. Mas tem a ver sim com a nossa força. Enquanto a gente não tiver uma sociedade mais igualitária, uma sociedade que veja, receba e cuide dos seus indivíduos de uma maneira muito parecida, não sei se igual seria possível dizer, mas no sentido dos direitos. Todo mundo tem ali na saída aqueles direitos basicão. Uma saúde legal, poder ir ao médico, fazer um exame de hemograma completo, ir numa escola bacana, que os professores estejam ali alimentados e recebendo um salário digno, que você tenha um transporte público de qualidade que não seja muito caro, que com seu salário, com a sua renda você consiga se mover pelos espaços da cidade e que esses espaços sejam inclusivos… Que você não se depare com um museu enorme, maravilhoso, século 17, todo fechado com grade e que você só de passar na calçada já fique com vergonha. Quando a gente tiver uma sociedade assim talvez a gente produza outras imagens. Até lá, eu acho que essa cena final do “Rã” é um convite para a população preta, periférica. Que se una, se fortaleça um no outro mesmo… Que faça uma limonada de um limão. E também uma forma de mostrar pro mundo o quanto a gente é alegre, a gente traz a arte, a gente oferece arte, música, beleza, dança pro mundo. É isso que a gente faz. A gente tem ótimas saídas, uma resiliência poderosa, que está nos nossos poros, no nosso DNA, que a gente vai levando para as gerações futuras. Essa cena pra mim é afrofuturista apesar dela ser de todo sempre, no sentido da convivência, da festa, da celebração… A gente está escravizado e celebrando, a gente morre de tarde e de noite tem um pagode. Tem uma coisa muito forte na gente, que a gente não pode negar. Tem a ver com a vida, com o desejo de ficar vivo e de esquecer, enfim… A gente pode fazer muitas combinações do que é e do que não é. No filme, eu garanto à você que o meu desejo era esse, era dizer pra população branca, não negra, que a gente não rouba, a gente não mata, a gente não trafica, vocês é que inventaram isso, inventaram que a gente faz isso. A gente faz várias outras coisas, a gente dança, come, faz festa, vive… Tem esse desejo pra mim com essa cena.
Felipe Ferreira
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