“PANTANAL” e a força da novela brasileira.
O ritual de assistir uma novela desperta diferentes sensações e sentimentos. Sim, porque além de ser um hábito fiel e inviolável da rotina do nosso povo, sentar diante da TV para ver o capítulo de uma novela configura algo muito além de um simples passatempo, de se entreter, ou se alienar (como bradam muitos por aí).
Acompanhar o desenrolar de um folhetim de segunda a sábado, por meses a fio, é um rito que atravessa a formação cultural e histórica da nossa sociedade. E estar ali diariamente é um encontro que vem acompanhado de significados das mais diferentes ordens.
Ver uma novela pela primeira vez aflora uma série de sentidos que dialogam com os tempos atuais e com a subjetividade que cada telespectador carrega. Ver o remake de uma novela exibida há 30 anos, além das reações inerentes ao contato com uma obra artística, traz a tiracolo uma dose generosa de saudosismo e um elo afetivo que faz reviver as memórias da obra e do recorte sociocultural que ela fazia na sua primeira exibição.
Hoje, vendo a nova versão de “PANTANAL” com minha mãe do lado, consigo ter com maior profundidade a dimensão do que o produto cultural de maior apelo da televisão na maior emissora aberta do país, causa na audiência.
Assim como outras novelas foram marcantes em diferentes fases da minha vida:
Verão 90 (ajudou a me curar de uma fossa pós fim de relacionamento),
Malhação (foi por muito tempo minha auto confissão de adolescente, onde eu tentava me ver, me encaixar e sobreviver às pressões típicas dessa fase cheia de questionamentos e esparsas respostas),
Mulheres Apaixonadas (ver a diversidade de gênero, ainda que sutil, da qual eu descobria aos poucos fazer parte, em pleno horário nobre me dava o alívio e a certeza de saber que não estava sozinho no mundo).
“Pantanal” toca num imaginário que me acompanhou por todo meu entendimento e amadurecimento como noveleiro.
Quando a primeira versão foi exibida pela Manchete eu sequer era nascido. Sou de 1991 e cresci ouvindo mainha falar no “fenômeno Pantanal”. A novela da onça que fez a Globo tremer, sair da zona de conforto. De tanto ouvir esse saudosismo materno a a saga rural rondava meu pensamento e me fazia imaginar como aquela imersão ao interior do Brasil em meio à tradicional repetição de cenário entre Rio e SP, mexeu com as pessoas e a fez ser o sucesso que foi (e a essa altura já podemos afirmar que continua sendo).
Tudo muda o tempo todo no mundo. Eu, você, o Brasil. Mas “tem vez” que a coisa só muda de nome, o que ela diz ou a estrutura que ela carrega continua do mesmo jeito, sem tirar nem pôr. O olhar vicioso e o comportamento retrógrado permanecem guiando a toada e dando nome aos bois.
A trama criada por Benedito Ruy Barbosa (agora adaptada com exímio talento e destreza por seu neto Bruno Luperi) converge histórias como num rio caudaloso onde a abundância de energias e correntezas nunca deixa o fluxo parar.
As relações familiares, a emancipação feminina, a relação do homem com a natureza, a disfuncionalidade entre a parentela mais próxima e as semelhanças com naturezas de realidades tão distantes, se atualizaram com alegorias narrativas e recursos tecnológicos impensáveis em 1990, ganharam novos contornos e profundidades, mas a essência que compõe a mata virgem das grandes personagens se manteve viva.
A capitalista linha do horizonte que aprisiona também nos anestesia e normaliza nossa forma de ver as relações e as instâncias de poder hierarquicamente nelas estabelecidas. O pai que projeta nos filhos a expectativa e o espelho da virilidade masculina e a continuidade do seu legado (de Joventino para Zé Leôncio e de Zé Leôncio para Tadeu e Jove); a redução da mulher aos afazeres domésticos, seu papel de porto seguro do homem provedor, de um corpo desprovido de desejo, de vontade, que aceita com parcimônia as decisões do marido (juntas, Filó e Maria Bruaca carregam similaridades patriarcais e nuances subjetivas que diferem seus papéis na “família”); a desconexão do convívio familiar provoca uma vulnerabilidade afetiva e a ausência de um propósito existencial que alimentam o status, a exposição e os excessos que tentam suprir as faltas (a relação entre Mariana e as filhas Madaleine, Irma e o neto).
Pantanal tem todos os elementos de um novelão. E isso já é meia comitiva andada para cair no gosto do público. Além de uma história consistente e bem escrita, a trama conta com uma direção primorosa, capitaneada por Rogério Gomes e Gustavo Fernandez, que faz da exuberância natural do lugar a moldura perfeita para nos colocar dentro da história.
Nem a mudança de fase, terror de muitas novelas recentes, fez com que a trama perdesse qualidade. Pelo contrário, a passada de bastão da 1ª para a 2ª fase destacou o trabalho cuidadoso e uniforme dos atores (a minúcia na composição de Bruna Linzmayer e Karine Teles, excelentes e viscerais como Madaleine, e Malu Rodrigues e Camila Morgado precisas no minimalismo manso e sorrateiro de Irma foram de impressionar mais que a semelhança física entre as atrizes).
E o elenco, é um oásis de grandes talentos. Um paraíso de gente jovem reunida e de nomes experientes de trânsito livre no cinema e no teatro.
Nos primeiros capítulos fomos contemplados pelas atuações de: Renato Góes (reluzente em seu primeiro protagonista no horário nobre), Enrique Diaz (sempre entregue aos papéis que faz), Juliana Paes, Letícia Salles (grata revelação), Paulo Gorgulho (numa emocionante e merecida homenagem), Leopoldo Pacheco.
E todos os dias nos encantamos com o trabalho maravilhoso de: Isabel Teixeira (esplêndida e transbordante como Maria Bruaca), Dira Paes ( uma força da natureza no papel de Filó) , Selma Ergrei (sempre magistral), Marcos Palmeira (perfeito como Zé Leôncio), Murilo Benício (deliciosamente odioso como Tenório), Osmar Prado (gigante em todas a densidade existencial do Velho do Rio), Almir Sater (um anfitrião que traz o espírito pantaneiro na alma), José Loreto (ótimo como o filho preterido), Julia Dalavia (belíssima na ousadia libertária de Guta), Silvero Pereira (afiado no time e no tom), Bella Campos (roubando a cena como a Muda), Guito (roubando a cena e nossos corações com a maturidade e o carisma de um veterano), Jesuíta Barbosa (camaleônico em mais um grande papel na sua consistente carreira) e Alanis Guillen (sua Juma nos encanta e cativa pela naturalidade da sua interpretação. Sensível, no tom, na estranheza do olhar. Uma escalação certeira da direção).
Seu sucesso não se sacramenta apenas pelos números de audiência (já na casa dos 30 pontos), mas pelo vínculo que ela consegue criar com quem a assiste.
Ver novela é um exercício diário de reconhecimento. Os memes, as piadas nas redes sociais, são consequências de uma ligação que se fundamenta lá no início, na presença de personagens carismáticos e humanos, no reencontro com a natureza que nos rodeia e passa despercebida, no poder cativante de um bom texto, que celebra a pluralidade da nossa língua e a essência, o simples em meio a tanta superficialidade e superlativos (na vida e na tela).
Tenho certeza de que, assim como foi para o emblemático elenco da versão de 1990, a “Pantanal” de agora será um divisor de águas não só profissionalmente, mas na vida pessoal de cada um dos envolvidos em recontar essa saga, atravessada pela experiência singular com a natureza ao redor do todo e dentro de si.
A partir do momento em que o remake passa a ocupar um lugar próprio no imaginário coletivo de quem faz e de quem assiste, seja no passado ou no agora, as águas e o trajeto do rio serão outros, serão únicos..
Dos filhos dos filhos dos nossos filhos verão...
Como diz um trecho da emblemática música de abertura composta por Marcus Viana, agora imortalizada na voz inconfundível de Maria Bethânia, espero que daqui a 30 anos, quando eu estiver com 61 (se vivo), meus filhos e os filhos dos meus contemporâneos possam revisitar , mais uma vez , com um novo olhar esse clássico atemporal da nossa teledramaturgia. Porque tudo começa e se eterniza com uma boa história. Através dela o enredo sempre será um mistério pronto para ser redescoberto e sentido por novos afluentes.
Felipe Ferreira
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