Politicamente correto, crianças e TV parte I
A discussão em torno do “politicamente correto” tem questionado a sua utilidade. Vamos enfrentar esse debate por partes!
Eu quero analisar duas situações relacionadas à infância. De modo específico, vamos nos debruçar sobre duas situações em programas de TV que envolvem crianças. O intuito é que a análise cumpra um caráter político e pedagógico.
Se um agente público ou privado comete um erro de natureza ética, política ou jurídica, precisa ser convidado a assumir a responsabilidade e reparar a falha ou o crime. Não sou partidário de linchamento público e tampouco de bravatas de heróis, afinal os atos de heroísmo se parecem muito com os de vilania: gente mascarada fazendo (o que acha ser) justiça com as próprias mãos. Eu sou adepto do fortalecimento das instituições numa sociedade democrática que preza por cumprimento das regras e escolhas políticas para promoção da justiça, sem que esta se confunda com vingança. Eu não nutro simpatia por vingadores, os princípios são muito voláteis, seguem regras próprias e colocam-se acima do bem e do mal.
O tal do “politicamente correto” pode nos ajudar a combater essas bravatas de heróis, sejam lobos solitários, ligas de justiça ou vingadores. Dito isso, vamos tratar de duas situações ocorridas em rede nacional de TV aberta. Vale a pergunta:
ONDE ESTAVAM OS HERÓIS E GRUPOS RELIGIOSOS E POLÍTICOS CONSERVADORES QUANDO CRIANÇAS FORAM EXPOSTAS A SITUAÇÕES NO MÍNIMO CONTROVERSAS?
No Programa Levanta-te do SBT em 2016, Silvio Santos perguntou para uma criança, “Deborah, você prefere sexo, poder ou dinheiro?”. Três anos depois, mais precisamente dia 22 de Setembro de 2019, o Programa Silvio Santos apresentou o quadro Concurso de Miss Infantil. Os dois casos são politicamente incorretos. A infância é uma categoria protetiva. Em linhas mais gerais, além da proteção, também é importante observarmos outras duas: provisão e participação. O que configura os três “pes”: Proteção, Provisão e Participação. Daí, uma adulta com vínculo biológico não pode tratar a criança como sua propriedade, crianças são seres plenos de direito. Uma criança não será cidadã quando crescer, ela é cidadã. Por isso, quando Silvio Santos pergunta para uma menina se ela prefere sexo, ou, quando ele pede para o júri escolher as pernas mais bonitas de meninas de 10 anos, avança o sinal da Proteção. A vulnerabilidade estrutural da infância está relacionada à ausência de poder político, econômico e de direitos civis das crianças. Elas não podem votar e ser votadas e vivem sob tutela de pessoas adultas. Por isso, existem leis internacionais e nacionais.
Através do Decreto Legislativo n° 28, de 14 de setembro de 1990, o Congresso Nacional aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC). O documento entrou em vigor internacional em 02 de setembro de 1990. CDC levou uma década para ser preparado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). A organização promove os direitos e o bem-estar de crianças e adolescentes em 190 países e territórios. Está presente no Brasil desde 1950. O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) surgiu em 1990 em conexão com movimentos mundiais pelos direitos de crianças e adolescentes que foram responsáveis pelo CDC.
Pois bem, esses documentos e todo o trabalho político feito por criancistas (gente adulta que trabalha com a valorização da cultura infantil), ativistas pelos direitos da infância no Brasil e no mundo recomendam que “politicamente correto” não é “blá-blá-blá” ou “mimimi”. Mas, são dispositivos relevantes para uma sociedade que se preocupa com as crianças. Por essa razão, temos restrições a essas práticas de exposição de crianças. Elas não podem ser expostas como foram nos casos dos programas citados. Por isso, politicamente correto não é uma bobagem.
POLITICAMENTE CORRETO SIGNIFICA: RESTRIÇÃO DE LINGUAGEM E AÇÃO QUE SÃO EXCLUDENTES, MARGINALIZANDO, INSULTANDO, PROVOCANDO ALGUM GRAU DE INJÚRIA CONTRA GRUPOS DE PESSOAS HISTORICAMENTE DISCRIMINADAS, O QUE ENFATIZA CATEGORIAS COM SEXO, GÊNERO, RAÇA, ETNIA, GERAÇÃO E DEFICIÊNCIA.
O que dizer de grupos que não reivindicam o politicamente correto? É um direito. Porém, não é de estranhar que movimentos conservadores não se posicionaram explicitamente contra as ações do apresentador Silvio Santos em 2016, tampouco em 2019? Sem dúvida, grupos políticos e religiosos conservadores têm se debruçado em assuntos que envolvem crianças e adolescentes, fizeram ações contra o debate sobre gênero na escola de modo bastante vigoroso na década de 2010. Mas, qual a explicação para reações tímidas contra Silvio Santos?
Na verdade, a esse respeito reações são praticamente inexistentes no período subsequente aos acontecimentos. Os baluartes que figuravam falando mal de desenhos animados ou de kits imaginários que ensinariam “sexo” para crianças pequenas não falaram nada sobre as atitudes de Silvio Santos. Por quê? Daí, surgem hipóteses que quero compartilhar e colocar nas rodas de conversa sobre o assunto.
POR QUE ALGUÉM FALA MAL DO DESENHO ANIMADO BOB ESPONJA OU DO FILME ANIMADO FROZEN E NÃO CONSEGUE VER A MESMA MALDADE NUM HOMEM ADULTO PERGUNTAR PARA UMA CRIANÇA SOBRE SEXO?
Ora, os desenhos animados citados não falam de sexo. Hipóteses: esses grupos são extremamente ideológicos, só querem enxergar progressistas e esquerdistas como vilões e curvam-se ao poder econômico, parecem incapazes de perceber crimes e equívocos de poderosos; mas, são capazes de ver pêlo em ovo quando a autoria é de grupos que buscam radicalizar a democracia. O que neste caso significa exigir que a participação das crianças seja efetiva na produção de uma sociedade plural e justa. Tudo indica que os conservadores mais barulhentos não se guiam pelos três “pês”: Proteção, Provisão e Participação. Mas, desejam mais ter as crianças como suas prisioneiras políticas. O que é politicamente incorreto.
Importante frisar: numa sociedade democrática, a existência grupos de Esquerda e Direita – em todos os seus matizes e nuances – são fundamentais. Mas, bravatas rasteiras puramente ideológicas desqualificam o debate e fazem mal para toda sociedade. O bem-estar das crianças é uma das melhores coisas que podemos fazer pela sociedade. Por isso, considero que concursos de beleza com crianças e perguntas sobre sexo para meninas estão na categoria: grave. Enquanto, Bob Esponja e Frozen estão na categoria, entretenimento. O politicamente correto ajuda a colocar pingos nos “is” e serve para dietas políticas de Esquerda e Direita.
Renato Noguera
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