Coletivo Indra

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Prazo de Validade

Imagem - Adriana Sá

Trabalhei por três anos como repositor numa loja. Foi nos corredores de uma grande rede de supermercados onde tive, na prática, meu primeiro contato com alguns ditados populares, que inicialmente eu escutava na rua, em casa, mas não conseguia enxergar seu real significado.

1- “Homem é igual a biscoito. Vai um e vem dezoito”.

Era um produto sair da prateleira pra gente ir repondo. Não podíamos esperar ficar vazio pra colocar tudo novamente. Foi um, a gente coloca vários pra ninguém sentir falta e para lei da atração ter efeito.

2- "Mais vale um pássaro na mão do que dois voando”.

Criança em supermercado é um rebu que eu assistia abismado e me deixava com vergonha (mais dos pais do que delas). Elas querem, algumas sequer pedem. Já metem a mão e botam no carrinho. É sempre um querer em quantidade. Nunca se contentam com um. Os pais falam “um só!” e elas choram. Querem tudo em dobro e ficam sem nada.

3- “Escravos de Jó”.

Não é bem um ditado, mas de tanto dizerem a gente acaba reproduzindo e não enxergando o dolo por trás da brincadeira. Um frenético tira, bota, põe, sei lá... Eu não podia deixar nada vencido nas prateleiras. Só depois eu entenderia que a gente pode ser escravizado sem nos dar conta. Coisas da modernidade, benesses do capitalismo, homem primata, selvagem capital.

Eu mudava de sessão algumas vezes, mas a repetição era imutável. É a mesma coisa de viajar, mudar a rotina da relação, trocar a roupa que pegamos de primeira sem nem olhar, ao abrir o guarda-roupa. O problema permanece contigo, as inquietações continuarão em você. A insatisfação muda de forma, mas não muda de essência.

Quando a gente começa a fazer algo novo é um entusiasmo só. É tudo lindo, tudo flor, tudo aceito, tudo amém. Nos primeiros semestres da faculdade a gente chega antes da aula começar, senta na primeira fila, ouve atento, anota tudo, não perde um lance. No quarto semestre em diante a gente chega em cima do laço, anota apenas o essencial, comemora sempre que não tem aula e não vê a hora de se formar logo. No início do namoro a gente não quer se desgrudar da pessoa amada.

O tempo perto dela passa rápido, qualquer coisa nos arranca um sorriso, é como se pisássemos nas nuvens. A semana demora para passar e a gente prefere sentir a presença do que sentir a saudade. Passado alguns anos, precisamos respirar sozinhos para continuarmos pulsando no mesmo peito. Passamos a respeitar a individualidade um do outro. Estamos juntos, mas precisamos fazer algumas coisas sozinhos. É saudável sentir saudade. Quem não entende e não pratica isso descamba na zona de conforto do casamento. O mel do primeiro ano vira o fel das infinitas bodas.

Com o passar do tempo a gente passa a ver outras cores, a sentir outros sabores, a ter consciência do que realmente vale a pena pra nós, o que precisa ser retirado e reposto na prateleira. Os corredores largos e atrativos de um supermercado se mostram pequenos diante a estrada que temos à nossa disposição fora dele. Passados três anos, aqui nessa sala esperando pra assinar os papéis da minha auto demissão, passa um filme na minha cabeça e a moral é que perecível ou não, produto ou pessoa, há um prazo de validade pra tudo.  

Felipe Ferreira

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