Coletivo Indra

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Religião e Estado não combinam. Pluralismo e democracia sim!

Construção da catedral de Brasília e esplanada dos ministérios aos fundo.

As eleições realizadas no último domingo para os representantes dos conselhos tutelares reacenderam neste mês as discussões acerca da laicidade do estado, que tem sido especialmente importante neste ano em razão da proximidade do atual presidente com lideranças evangélicas, e por conta de algumas de suas declarações, como a respeito da intenção de nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal (ainda não concretizada), ou quando escreveu que “o Estado é laico, sim. Mas o Presidente da República é CRISTÃO, como aproximadamente 90% do povo brasileiro também o É”. 

Vivemos num país laico, o que significa, de maneira bastante resumida, que nosso Estado não professa qualquer religião em caráter oficial ou institucional, nem impõe qualquer tipo de restrição à prática de seus cidadãos. Conforme consta do texto da Constituição, é assegurada a liberdade de crença e de culto, e proibido qualquer tipo de discriminação por esses motivos. 

Por outro lado, ao Estado é vedada a promoção e financiamento de cultos religiosos, ou que impeça o funcionamento destes. Não cabe ao Estado proferir qualquer tipo de crença, de modo que o fato de o presidente ser cristão não pode motivar as uma suas escolhas no cargo. 

O exercício de qualquer religião é livre para os cidadãos, mas vedado para o Poder Público, o qual deve se eximir destas práticas e apenas atuar para assegurar a liberdade dos indivíduos.

Nem sempre foi assim. Após a independência de Portugal, a Constituição do Brasil Império de 1824 adotou a religião católica como oficial, impedindo que outros credos fossem professados de maneira pública. Foi após a proclamação da república somente, que em 07 de janeiro de 1890 foi promulgado o Decreto 119-A, de autoria de Ruy Barbosa, que separou definitivamente o Estado de qualquer religião, e assegurou a igualdade a todas as religiões de se professarem em ambiente público ou privado. Essa liberdade religiosa foi consolidada com a Constituição de 1891, primeira constituição promulgada no seio da república. 

Desde então, todas as constituições respeitaram esse princípio, apesar de não significar a inexistência da influência da religião, notadamente cristã, nos textos posteriores. Por exemplo, todas elas, oriundas de um regime democrático ou não, fizeram menção a Deus em seu preâmbulo, incluindo a Constituição de 1988, promulgada “sob a proteção de Deus”. Além disso, esta prevê o ensino religioso público (não obrigatório) e a imunidade tributária para templos de qualquer culto, em seu artigo 150, inciso VI.

Ao compreender ser liberdade do indivíduo a escolha (ou não) por uma crença pessoal, essa se estende, por óbvio, a todos os cidadãos, ainda que ocupantes de cargos públicos, o que não significa que esta deve motivar o exercício da sua atividade pública. Assim, o fato de o presidente ser cristão deveria ser irrelevante. 

Por isso, ao propor a indicação de um Ministro para Supremo Tribunal Federal por conta de sua religião, o que o presidente faz é contrariar a constituição e desrespeitar os indivíduos que professam credos distintos. Do ponto de vista estritamente técnico, para ocupar o cargo de Ministro da Corte os únicos requisitos são ser brasileiro nato, ter idade entre 35 e 65 anos, estar no gozo dos direitos políticos, possuir notável saber jurídico e ter reputação ilibada, ou seja, a religião não é motivo para escolha tampouco para exclusão do nome. Por outro lado, o escolhido, assim como o presidente, se compromete em respeitar os ditames constitucionais, dentre eles, a liberdade de culto e de crença. 

Tal fato impede, por si só, decisões que estejam baseadas apenas em fundamentos de qualquer doutrina religiosa. Qualquer texto tido como sagrado pode ser citado nos votos, mas certamente este não pode ser a justificativa única do entendimento de um Ministro. O que deve motivar uma decisão é, em última análise, o respeito aos princípios e compromissos estabelecidos pelo próprio texto da Constituição. 

Quanto aos conselhos tutelares, criados em 1990 pelo ECA como uma forma da sociedade civil participar da construção das políticas públicas para crianças e adolescentes e assegurar a proteção dos direitos destes, agora se tornaram alvo do projeto de denominações religiosas sectárias, já que configuram polos de poder e respeito dentro das comunidades que atuam e podem servir para a expansão da influência destas e de seus ideais. 

Basta perceber que a disputa não é pela construção de políticas públicas mais eficientes, mas se pautam pela defesa de questões morais ligadas a identidade de gênero e sexualidade. Aliás, esse é o discurso presente no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do atual governo, que possui um viés conservador e destoante das discussões na sociedade que buscam o respeito e a diversidade, conforme previsto em nossa Constituição.

Diversos candidatos as vagas dos conselhos, exibiam peças de campanha com referência a deus e a preceitos religiosos, em contradição com o que prevê a Constituição e o próprio ECA. Não se pode esquecer, que a atividade do conselheiro é tida como serviço público relevante (art. 135) e, portanto, está sujeita a todas as diretrizes que envolvem o exercício de qualquer função pública. Ou seja, o conselheiro pode ser cristão, mas isso também deve ser irrelevante. 

É triste pensar que num país em que recebe mais de 100 mil denúncias de violência sexual e violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes por ano, o objetivo de diversas denominações religiosas não seja o de contribuir para a mudança desse quadro, mas tão somente utilizam das instâncias como forma de impor uma ideologia conservadora (pois é, ideologia não é só coisa de esquerda), para buscar a ampliação de seu poder, econômico e social, na sociedade.  

A garantia do Estado Laico demanda dos órgãos institucionalizados, não apenas uma postura de abstenção com relação a práticas religiosas, mas também um comportamento ativo, para garantia da verdadeira liberdade de crença de seus cidadãos e de não discriminação. Uma verdadeira democracia somente é possível se o pluralismo da sociedade for reconhecido, não apenas para evitar conflitos, mas que possibilite a integração e comunicação que amplie as possibilidades de transformação e evolução coletiva. O direito do outro não deve diminuir o meu, mas o fortalecer. Por isso a intolerância, em todos os aspectos, é tão danosa numa democracia. 

A religião é bem-vinda na sociedade, mas sobretudo o pluralismo religioso.

Arthur Spada

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