Coletivo Indra

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Religião nos tempos de cólera

Abraço entre Dr. Dráuzio e Suzy (@desenhosdonando)

Consta nos astros, nos signos, nos búzios

Eu li num anúncio, eu vi no espelho

Tá lá no evangelho, garantem os orixás

Serás o meu amor, serás a minha paz*”

Ainda não sei se o certo é “teu” ou “vosso” nome, “teu” ou “vosso” reino, se é pra Ele perdoar as “dívidas” ou as “ofensas”. A certeza que tenho é a de que continuamos sem saber o que fazemos. O tempo passou e não aprendemos com o livro, a prece, a teoria.  

Eu nunca tive paciência, nem disposição para dogmas religiosos. Não rezo todos os dias, já dormi rezando e acordei sem lembrar se havia parado na “Ave Maria” ou no “Pai Nosso”, não peço “bença” à minha mãe, não faço o símbolo da cruz ao passar na frente de uma igreja. A assiduidade à cultos, igrejas, sessões espíritas, sinagogas ou terreiros de candomblé nunca fez parte da minha realidade cotidiana. Eu sempre enxerguei a fé como algo particular, uma conexão introspectiva cujo poder do ato se fortalece mais na abstração do que nas estruturas concretas dos espaços que a definem. 

Lembro como se fosse hoje de uma aula no ensino fundamental na qual disse todo empolgado que adorava algo (não lembro o que) e fui repreendido enfaticamente pela professora com o argumento que só se pode adorar Deus. De um lado a criança que enxerga a palavra como mais um verbo em meio a tantos outros da língua portuguesa, do outro uma professora cuja fé aprisiona a literalidade de uma simples ação. Professora de um estado laico e desprovida de qualquer formação acadêmica para tal. Eu tinha pavor das aulas de ensino religioso e continuo achando a disciplina um placebo espiritual tendencioso e irrelevante na prática da escola e, sobretudo, da vida. Qual religião? A fé de um(a) professor(a) como única referência? A laicidade do Estado é mera utopia constitucional? 

Agradeço por meus pais não terem seguido uma ordem religiosa arraigada à educação que me foi dada. Não fui obrigado a fazer catequese, primeira comunhão, eucarística e coisas do tipo. Minha mãe, sempre me mostrou a fé como algo mais de ação do que de teoria. É uma colheita semeada no dia a dia sem a cobrança pelo medo, sem o julgamento do olhar alheio e sem o verniz de uma fachada perfeita por fora e deteriorada por dentro. 

Religião é a institucionalização da fé. Foi a maneira - para o bem ou para o mal - criada pela humanidade para oficializar suas crenças. Mas fundar discursos específicos moldados na subjetividade das suas diretrizes desbota sua essência mais divina. A forma prevalece ao significado e ter uma religião para chamar de sua vira uma capa de validação social e moral que determina caráter e define princípios.

A religiosidade foi meu farol na reflexão da polêmica envolvendo o Dr. Dráuzio Varella e no entendimento mais íntimo da minha não-religião. A reação odiosa e lichatória ao abraço dado por ele como ser humano comovido com o abandono sócio-familiar da detenta Suzy, diz muito sobre o real sentido do pensamento cristão ao expor o comportamento contraditório e violento daqueles que se autodenominam baluartes do amor de Cristo. O ato empático e afetuoso praticado por ele ao final da reportagem é a expressão genuína do amor ao próximo e não invalida o crime da entrevistada. Afinal, compaixão e perdão não são pilares fundamentais da fé cristã?

Em nenhum momento me senti enganado ou lesado com a reportagem. Ninguém cumpre pena num presídio sem ter cometido um crime (a não ser em casos de erros judiciais). O objetivo da reportagem era mostrar a realidade vivida por detentas transexuais no sistema carcerário brasileiro. Como ele mesmo disse num vídeo publicado em resposta a todo alvoroço criado, quem estava ali era o médico, não o juíz. Quem estava ali era um ser iluminado com sensibilidade para sentir e benevolência para ser solidário a dor do outro. Infelizmente, uma grande parcela dos que se revoltaram são providos de uma limitação de sentimentos que só os fazem enxergar a religião pela lente do entendimento teórico e da memorização de versículos.            

Ser praticante de uma religião não te isenta de exercitar os ensinamentos aprendidos. Mais do que manter a conexão com sua fé viva é necessário sincronizá-la à maneira como você enxerga o outro ao seu redor, principalmente quando esse outro não é um ente querido ou uma pessoa próxima do seu círculo de convívio. A solidariedade não deve ser seletiva à questões de gênero, de etnias ou de ordem social. Religião por conveniência é um simulacro que esconde o que de fato nunca existiu. 

Velhos tempos de cólera e novos tempos de crise iguais a esses que revivemos agora servem para refletirmos sobre a vida por uma caminho mais humano, sem a influência de credos pessoais, juízo de valores e do manual de cabresto-conduta de cada religião. Ver o outro e enxergá-lo como seu semelhante é um aprendizado que transcende salmos, mantras, cânticos, sermões, louvores. É o amor é seu estado bruto como o poder transformador de um abraço. 

“Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas

Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos

Profetas, sinopses, espelhos, conselhos

Se dane o evangelho e todos os orixás

Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz*”



*Trecho da música “Dueto” de Chico e Clara Buarque.

Felipe Ferreira

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