Rituais e Mitos
Porque oramos, meditamos, desabafamos para com aquilo que não nos é real? E para acessar este “outro mundo”, precisamos de ritos, liturgias, portais. Parece-me que somos seres ritualísticos por excelência. Até o surgimento da psicologia, os mitos e ritos tinham um papel osmótico em nossas vidas. Ainda que os cientistas expliquem a neurociência, aumentam o número de crentes. Eis o mistério da fé, diz o padre!
Vamos viajar um pouquinho lá nas cavernas com pinturas de cenas do cotidiano. Há longas teses a respeito dos porquês realizarem registros nas paredes. Os hominídeos passam a cultivar seu próprio alimento sem depender da caça a toda sorte. Tornam-se sedentários, desenvolvem a agricultura e pecuária e o sagrado saiu das paredes indo para os campos, agora representando as estações, chuvas, rios, mares, sol, vento. A eles são dadas personificações a quem dirigir suas súplicas, evitar tragédias ou pedir boas colheitas. Para um jovem urbano, “o Senhor é meu pastor e nada me faltara”, não tem sentido real, nem as cirandas folclóricas de mudanças sazonais. Como brinca prof. Karnal, seria melhor dizer, "o wifi é meu provedor e bateria não me acabará”!
A ARQUEOLOGIA NOS PÕE A REFLETIR OUTRO EVENTO: A MORTE.
Flores cortadas e depositadas ao lado do corpo nas cavernas de Shanidar, no Iraque. Houve uma mudança cognitiva aí. O que será mudou? Passamos a internalizar a vida? Este morto então será eu amanhã? O rito fúnebre foi criado. A observação da vida não está mais na sobrevivência, mas na própria percepção de continuidade. O ser humano é um animal sofisticado, e como todo ser, temos a necessidade de se reproduzir, se perpetuar. Por sermos mais criativos e de um elemento notável, a consciência, criamos a eternidade da vida, atribuindo narrativas supramundanas.
A MORTE COMEÇA NOS ENSINAR A PRÓPRIA VIDA.
Usamos os rituais como disciplina para uma determinar uma ordem em um lugar onde se trabalha. Pode ser um jogo, uma missa, um casamento, uma reunião, todos em um ambiente delimitado com funções, linguagens, códigos, tempos, movimentos, vestimentas. O intuito do rito é a chamada eficácia litúrgica, explica o prof. Mircea Eliade, o qual tira a pessoa do espaço profano e adentra em outro regime: o espaço do sagrado. Os ritos nos faz pensar sobre o sentido de nossa existência por meio de idiomas e personagens sacralizados. A liturgia tem o poder, a vocação, de manter esses indivíduos em uma coesão, comungando os mesmos princípios e valores. Isso vale para qualquer religião.
Os mitos só tem real valor na hora dos ritos. É o rito que mantém o mito vivo. Sem o ritual, o mito não pode ser vivenciado, sentido, experimentado. É o drama litúrgico. Os aspectos místicos e míticos incorporados à vida inspiram o senso do sagrado, eleva nossos sentidos a além deste mundo de tormentos. Soa contemplativo, chega a ser uma espécie de meditação. A escritora Karen Armstrong, no livro Em nome de Deus, explica que “o mito é algo intemporal e constante em nossa existência, onde proporciona um sentido em seu cotidiano” e o que buscamos refúgio de paz e segurança, de alegria. A história humana está recheada de mitos.
E em contra-partida temos o logos, a lógica. Contudo, a ciência não enxuga lágrimas, as religiões sim. Seria impensável explicar a uma mãe que seu filho era apenas um composto de carbono desfeito na morte. Estamos além da razão. A lógica encerra aí seu papel e adentramos nas sensações, nas emoções. O mito é uma tentativa de ilustrar a vida além da razão, nos dar sentido àquilo que nos decepciona, angustia, desespera. A lógica não tem o poder de responder todas as perguntas sobre o ser. Como escutei de um astrofísico anos atrás - eu posso explicar como tudo funciona no universo, mas não sei explicar porque ele funciona. Essa frase golpeou meu estômago da lógica pretensiosa. Buscamos respostas para tudo.
A VIDA TEM RESPOSTAS ÀS TODAS NOSSAS PERGUNTAS? E SE A VIDA FOR APENAS ASSIM, SEM RESPOSTAS?
O Budismo é uma religião de ritos. Funcionam como “hábeis meios de salvação”, Hoben em japonês, Upaya em sânscrito. Uma estátua ou pintura do Buddha no templo é um barco que leva pessoas sofredoras à outra margem da paz e da tranquilidade, é uma lanterna para levar luz a um caminho escuro. Estes ícones são como seres benéficos, estendendo a mão para nós, confusos, pegando-nos pelas mãos rumo à direção certa. Os ritos têm ainda uma função estrutural importante: a integração e a sustentação dos devotos no Sangha, a Comunidade, a terceira jóia do Budismo. Nela pouco importa o status, cor, origem, condição social, identidade sexual, conhecimento doutrinário. Todos acessam por igual ao portal do Sagrado.
Vou dar um exemplo. Muito devotos possuem um altar budista (butsudan, morada do Buda) em casa. A imagem central, no caso da escola Jodo Shin, temos o Buda Amida. Ele representa o Sagrado transcendental, o Dharma personificado. As flores no lado esquerdo a Vida, a efemeridade dos fenômenos. Ao centro o incenso simbolizando a transformação, a purificação, da vida se esvanecendo com o tempo rumo à ao mundo da Iluminação, indicado pela vela à direita. O sino marca o ritmo dos ritos, seu som nos leva à introspecção e serenidade. Todos estes ornamentos sob o olhar atento do Buda ao centro. Alguns devotos preservam o costume de oferecer alimentos pela manhã em agradecimento a inúmeras causas e condições o qual tudo que chega até nós.
E você, qual é o seu rito e seu mito? Tens um cantinho para acalmar a mente, ser o seu refúgio nos momentos do inexplicável drama humano?
Diante do Buda Amida, Aquele adorado por homens e devas,
Eu me prostro na mais profunda reverência.
Em sua maravilhosa Terra da Graça,
Rodeado, ele está, por incontáveis Bodhisattvas.
Estrofe do Hino das “Doze Adorações ao Buda Amitabha” composto por Nagarjuna, séc. III
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Rev. Jean Tetsuji釋哲慈
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