Coletivo Indra

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Romantização tóxica

Antes de qualquer coisa, aviso que o texto de hoje pode acionar gatilhos (abuso sexual).

Bia é uma mulher que foi abusada sexualmente por um colega de trabalho em uma “festa da firma” – quase quatro meses depois, descobriu que estava grávida, e por conta do estágio da gestação, não podia mais acionar o seu direito de aborto legal.

Bia então deu à luz a Gabriela. Já no hospital ela informou a situação e que tinha interesse em fazer a entrega protegida da criança.

Antes de continuar... entrega protegida ou entrega voluntária é um procedimento oficial que não pode ser confundido com o abandono e menos ainda com uma atitude criminosa. O Estatuto da Criança e do Adolescente garante que a mulher (no final da gestação ou logo após o parto) entregue a criança para que ela possa ser adotada, privilegiando a sua segurança e seu bem-estar, ao invés de abandoná-la em algum lugar ou com alguma pessoa.

Para que isso funcione, é importantíssimo que toda uma equipe multidisciplinar acolha essa mulher e a sua decisão, sem questionar ou julgar, prestando apoio e orientação de forma humanizada.

Infelizmente Bia não teve esse apoio.

Desde o primeiro atendimento médico: parabéns, mamãe; qual vai ser o nome da sua menininha?; ela é perfeita, graças a deus; você vai ser uma mãe linda; já comprou o bercinho?; já arrumou o quartinho? (...)

Bia não queria ser mãe, mas com isso teve uma única certeza: ela tinha que ser mãe e pronto.

Durante toda a sua gestação ela procurou se manter longe de médicos, hospitais e laboratórios – seu pré-natal foi prejudicado por conta disso. Mas levou a gravidez até o fim.

Não foi diferente quando Gabriela nasceu.

Assim que viu o rosto da criança, Bia começou a chorar e pediu ajuda da equipe do hospital, narrando toda a situação.

Ela estava olhando o seu agressor...não era apenas Gabriela que estava em seus braços, mas todo o sofrimento que foi imposto a ambas desde aquela festa.

Como visto, essa equipe tinha o dever de acolher Bia e suas escolhas e dar seguimento ao procedimento da entrega protegida. Mas não foi isso que aconteceu.

Ao invés de a equipe prestar acolhimento à sua decisão, ela foi completamente desestimulada e repreendida, levando a criança para casa, passando a temer ser punida por um crime que não cometeu.

Quando Bia ainda no processo de absorção de todas essas informações, foi surpreendida, alguns dias depois, com um processo que pretendia retirar a criança dela (com o argumento de que ela não teria condições emocionais para cuidar de Gabriela).

Esse processo durou 03 anos, com idas e vindas de Gabriela a instituições de acolhimento, e Bia tendo que “brigar”, de forma compulsória, pela guarda da criança.

Ela foi obrigada a se mudar, ela foi obrigada a organizar o quarto da criança, ela foi obrigada a trocar de emprego, ela foi obrigada a acionar diversas pessoas, pois a Justiça impunha uma série de condições e necessidade de uma rede de apoio para que Bia fosse lida como uma mãe exemplar.

Na ultima audiência, após Bia ser acusada de abandono, de mentirosa, de desinteressada pela criança pela juíza, pelo promotor e pela assistente social, uma única profissional da área da saúde identificou que na verdade Bia nunca quis ter sido a mãe de Gabriela. E finalmente a entrega protegida aconteceu...

Em nenhum momento foi questionado sequer o nome do “genitor”.

Bia foi violentada três vezes: (1) quando foi abusada; (2) quando lhe foi imposta uma gestação e uma maternidade indesejadas; (3) quando, após se “conformar” e assumir esse papel, foi jogada em um processo doloroso e interminável.

Os nomes dessa narrativa são fictícios, mas a história é real, e acontece com mais frequência do que a gente pode imaginar.

A romantização da maternidade, o lugar de amor e cuidado que são destinados à mulher, são muito mais tóxicos do que a gente pode pensar.

Como a gente pode ver nesse caso da Bia e da Gabriela, o machismo está institucionalizado e está presente nos locais de poder e de decisão, funcionando o sistema de justiça ainda como um censor daquilo que é tradicional, daquilo que é moral e predominantemente aceito.

Nem Bia e nem Gabriela deram causa a nenhuma dessas violências. Acontece que muitas Bias e muitas Gabrielas são jogadas nessa realidade, e mesmo estando séculos distantes da “roda dos enjeitados”, a culpa ainda as persegue.

O final dessa história, apesar de ela ser carregada de traumas e cicatrizes, representa um novo começo, tanto para Bia, como para Gabriela.

 Fernanda Darcie

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